9.5.07

12. o psicopata americano


Brett Easton Ellis
Factos recentes fizeram-me vir à memória livros passados. Além disso, precisava de mudar o registo, deixar-me de conspirações mitico-históricas e universos alternativos fantásticos. Senti que precisava de uma injecção de realidade, vai daí lembrei-me de um livro que, felizmente, de real não tem nada. Como não estava com o computador à frente (graças a Deus ainda se vai tendo alguns momentos desses) resolvi tirar umas notas num caderno, como fazem os escritores. A vaidade daquele momento com certeza que iria compensar a humilhação de quando o escritor virasse dactilógrafa e tivesse que dactilografar tudo outra vez. Justiça poética. Para não passar essa humilhação, perdi a folha onde tinha as notas. Além de lá estar todas as boas ideias que resultaram da leitura do livro, ainda tem a agravante de alguém poder achar a folha e lê-la, coisa que não estava nos planos. Porque aqui, como é óbvio, ninguém lê... Brett Easton Ellis é um daqueles escritores que esteve na moda, porque tinha livros dificeis onde transparecia alguma inteligência, porque era uma pessoa dificil e peculiar e porque era um gajo in. E tanto mais na moda estava quanto piores eram os seus livros. Acho que os fui lendo todos, ou quase todos, também não eram muitos e como tinham algum sexo, ia-se lendo... Menos que zero, as regras de atracção, e Glamorama (acho que este foi depois)... Todos maus. Muito maus. Mas, quanto a mim, ele tinha uma qualidade. Escrevia sobre nada mas, dava a sensação de que tinha algo a dizer, que talvez nos dissesse na próxima página ou que, caso não nos dissesse, era porque não éramos suficientemente in ou cool para o saber.
Um dia, na altura quando ainda havia tempo para visitar e namorar pormenorizadamente a feira do livro no palácio, após namorar indefinidamente o livro, decidi comprá-lo. Dois contos. E a chamar-me interiormente estúpido por estar a comprar uma coisa que tinha quase a certeza que não prestava. Enganei-me. Prestava, e bastante. O psicopata americano contava a história de um yuppie, raça felizmente agora extinta, que navegava por Manhatan a fazer todas as coisas estúpidas que os yuppies na altura faziam, a saber, ganhar dinheiro fazendo quase nada, comprar roupa e mobiliário minimalista finlandês, ir a festas e trocar os nomes de todas as pessoas que conhecia. E falar sobre roupa. Meu Deus. Como ele falava sobre roupa. Não se calava. Que seca, pensava eu. Mas ao mesmo tempo, intencionalmente ou não, Patrick Bateman, o psicopata, reflectia na perfeição o vazio que toda aquela gente e aquele meio representavam. Era banal, oco e vazio, e e suscitava uma profunda antipatia. Nada de interesse, portanto. Até que se começa a revelar. Maltrata mendigos, aluga prostitutas, que depois de sexo espanca metodicamente, droga-se, bebe e começa a matar. E é aqui que me comecei a preocupar, ao constatar que lia com interesse o relato dos seus actos, que me apercebia da sua profunda indiferença acerca dos actos que cometia, da violência que praticava. Enquanto que, objectivamente, todos os meus instintos berravam contra o chorrilho de atrocidades que ele praticava, não conseguia deixar de constatar que toda aquela violência me causava de facto algum interesse. Embora me chocasse tudo o que estava a ler, lia cada vez mais depressa e horrorizava-me com o interesse doentio que tudo aquilo suscitava em mim. Seria só a mim, interrogava-me? Achei que não deixava de ser uma pessoa normal, de Ter os sentimentos direccionados na direcção certa. Mas cheguei à conclusão que a violência exerce de facto um fascínio muito especial em toda a gente. Aquela indiferença gélida perante a morte e a tortura, a meticulosidade posta em cada um dos seus actos, a facilidade com que voltava à sua vida normal depois de cada acesso de loucura dava que pensar. Parecia quase normal, que depois das atrocidades, tudo voltasse a ser como dantes. Felizmente o livro acabou por acabar, e depois de analisar friamente todos os sentimentos que por mim passaram, apenas cheguei à conclusão que a violência, se cuidadosamente servida, acaba por ser aceite como normal. Era só um livro, mas algo estava decididamente mal se o tínhamos conseguido ler até ao fim sem o deitar fora a meio. Acho que o problema acaba por ser esse. A incapacidade que se sente em rejeitar à priori coisas profundamente más. Tolerar a violência sem dizer logo instantaneamente que este livro é uma porcaria que só transmite coisas más. E enquanto as pessoas normais conseguem atravessar experiências desse tipo sem se deixar influenciar, não resulta muito difícil compreender que, para outro tipo de pessoas, toda esta violência pode chegar a tornar-se uma coisa normal. E que percam a noção das fronteiras, que confundam aquilo que deveria ser apenas um livro ou um filme com a vida real. Como os soldados americanos quasi adolescentes que, na guerra do golfo, saiam dos tanques com a música dos seus fones no máximo e desatavam a matar qualquer iraquiano que lhes aparecesse à frente. Era como se fosse um jogo de computador. Game over e siga o baile. Era apenas normal. O problema, é que não é normal. O problema é que eles já não conseguem ver que não é normal. E depois as desgraças acontecem, no meio daquilo que todos nós entendemos como civilização. E o livro? É bom ou mau? Não sei...