10.10.08

18 - Gog



Giovanni Papini

Sempre achei que o mais dificil quando se escreve um livro á ter a idéia. Acho a idéia tão importante que acho que deveria passar a chamar-lhe "A Idéia". Não é dificil escrever bem. Quer dizer, se calhar até é dificil, mas há muita gente que sabe escrever bem, e a maioria das pessoas que não sabe é por pura preguiça. Não é transcendente saber alinhavar umas palavras pela ordem correcta ao longo de uma frase, até porque não está escrito em lado nenhum que escrever bem implica complicar muito. Pelo contrário. Eu, adepto confesso da frase curta, acho que na simplicidade está muito do mérito de uma boa escrita. De qualquer forma, e no que diz respeito aos livros, a boa escrita pouco ou nada interessa. Os franceses do século 19 escreviam super bem e não saiu um livro de jeito de toda a sua produção (pelo menos do Balzac, Baudelaire,Proust, Flaubert, Stendhal e Victor Hugo). O Kafka era competente a escrever mas o que é facto é que não se aproveita nenhum dos seus livros, que são, convenhamos, uma seca. Bem, poderão não ser todos, se calhar é pretensão minha generalizar, uma vez que não os li a todos. Só li O Processo, O Covil, A metamorfose, A grande Muralha da China e O castelo. O Milan Kundera escreve bem e até conseguimos de facto retirar algum prazer da sua leitura, mas todos os seus livros são iguais e hoje, alguns anos depois de os ter lido, confundo-os todos e não me lembro de nenhum. Convém mais uma vez não generalizar, uma vez que só li A brincadeira, A insustentável leveza do ser, O livro dos amores risíveis, A valsa do adeus, A vida não é aqui e A imortalidade. O António Lobo Antunes escreve tão bem que parece, quando lemos os seus livros, que estamos a ouvir uma voz tão doce que pertence a uma pessoa que expira rebuçados, mas depois de os ler, ou ainda a meio da leitura, já não nos lembramos de nada do que está para trás. Mas não quero generalizar: só li o Auto dos danados, A ordem natural das coisas, os Cus de Judas, o Tratado das paixões da alma, A morte de Carlos Gardel, a Memória de elefante. Enfim. poderia continuar com os russos, mas esquece lá isso. Ou então com os americanos, aquele tridente adormecedor completamente desprovido de idéias interessantes, constituido por William Faulkner, John Steinbeck e Ernest Hemingway, curiosamente, todos prémio Nobel, penso eu. É chato e culturalmente incorrecto dizer mal do Hemingway, principalmente porque não li os livros dele todos. Só li o Paris é uma festa, o Velho e o mar, Por quem os sinos dobram, As neves do kilimanjaro, O adeus às armas e o Jardim do Éden . Mas não. A idéia é falar deste livro espantoso, cheio de boas idéais chamado Gog. Então é assim. Gog é um milionário aborrecido que tem um iman interno que atrai excêntricos e, quando esse iman não funciona, então é ele próprio que se propõe fazer as coisas mais incríveis. Enumeremos então o que o livro nos conta, de memória e sem ordem.

Para começar, há todo o conjunto de conversas com Henry Ford, Ghandi, Einstein, Freud, H G Wells, George Bernard Shaw, Edison, o Conde de Saint Germain, Lénine e alguns outros. Não serão propriamente conversas, uma vez que Gog, super inteligente, se limita a deixá-los discorrer sobre o que lhes vai na alma e no corpo. Não são também entrevistas, porque Gog não se dá ao trabalho de lhes fazer perguntas. Ele sabe que com os génios, a única maneira de interagir é deixá-los falar livremente, não correndo o risco, nem de se lhes fazer perguntas idiotas e insuficientes sobre a matéria que eles dominam, nem fazendo perguntas idiotas sobre coisas que a eles não lhes interessam nada e que, consequentemente, nada de importante teriam a dizer. E depois há a própria atitude de Gog perante os génios. Ele espera genuinamente que os outros tenham alguma coisa para lhe ensinar, mas mantém uma atitude cáptica e desapaixonada, prevendo à priori que nada de muito novo vai sair dali. Ás vezes engana-se, mas às vezes não.

Outra vez, fala-nos da colecção de sábios que fez, sábios multi disciplinares, multi rácicos e multi, chamemos-lhe assim, religiosos. Obviamente que constata que, ao dar-lhes uns minutos de atenção para que façam as suas habilidades, eles não são nem muito hábeis nem lá muito honestos. Constata aquilo que eu lhe poderia ter dito. Os sábios, feiticeiros, sacerdotes e etc das tribos são apenas aqueles que inventaram um pretexto para não terem, nem que caçar, nem arrumar a caverna.

Noutra ocasião, descreve-nos a ilha em que estava estipulado pela lei que a população nunca poderia ultrapassar os 770 habitantes, número que ultrapassado poria em causa o equilíbrio ecológico. Assim sendo, todos os anos num determinado dia, se fazia o balanço e se matava os que excediam esse número, sendo os excedentes escolhidos por critérios que não se poderia considerar isentos de lógica.

Entre os inúmeros excêntricos (ou não) que recebia, podia-se contar o historiador que escrevia a história do presente para o passado, pois só analisando as consequências que os actos tiveram no presente se poderia julgar correctamente da sua pertinência quando foram cometidos no passado.

Ou o médium que convocava, não os mortos, por considerar que estes não poderiam trazer nada de novo ao presente, mas os vivos, pois esses é que poderiam contribuir com algo de útil. Um aparte. Este médium fez Gog tomar consciência da sua profunda solidão, dado que não havia ninguém entre os vivos que ele quisesse invocar. Assim, mesmo sendo o médium competente e aparentemente honesto, não tinha nenhuma serventia para Gog, que o mandou imediatamente embora e, penso eu, que sem dinheiro para o táxi.

Ou o representante da FOM, friends of mankind, que advogava que o aumento contínuo da humanidade na terra é contrário à própria humanidade. A solução passaria por, segundo a FOM,eliminar aqueles que não faziam falta, tais como os inúteis, os criminosos e os velhos, que já viveram bastante.

Voltando às colecções, Gog coleccionava anões, gigantes, sósias, gémeos, todos "objectos" que tinham uma qualquer qualidade intrínseca que os tornasse diferentes e originais no meio da humanidade. Embora seja evidente que faria muito mais sentido uma colecção de super modelas, não consigo deixar de achar piada a uma colecção de gigantes, metidos numa qualquer sala de pé direito triplo ou mesmo quádruplo. E, na sala seguinte, de pé direito zer virgula cinco, a colecção de anões, que não consigo imaginar de outra maneira que não resmungões. Mas isto sou eu... Gos não fazia juízos de valor...

E depois o capítulo das convicções pessoais que Gog tinha. Que as pessoas deveriam todas usar máscaras, e que havia quatro razões para isto. A razão higiénica (confesso que não apanhei bem esta), a razão estética (esta será evidente), a razão moral e a razão educativa. Não vou comentar...

Ou então a convicção de que um dos piores vícios da humanidade era comer em sociedade. Sendo a alimentação um instinto perfeitamente individual (são raros os exemplos em que espécies se alimentam em conjunto, tirando talvez os leões e as hienas, que são dois maus exemplos) Gog sugeria que todas as casa tivessem micro compartimentos onde as pessoas poderiam tomar as refeições educadamente sozinhas. Tipo casas de banho. E embora os mais sensíveis se possam repugnar com esta comparação, ela é perfeitamente lógica. Ambas as acções envolvem troca de alimentos entre o interior e o exterior do corpo humano, mudando apenas a extremidade em que a acção se passa e o sentido em que a acção decorre. Não quero ser fundamentalista, mas pelo menos no que diz respeito à fruta, assino por baixo tudo o que ele diz...

Enfim, dado serem inúmeros es exemplos de idéias, chamemos-lhe assim, originais, fico-me por aqui. Agora digo e repito. Num único livro, Giovanni Papini desfila mais idéias (e mais originais) que todos os prémios Nobel juntos.