18.4.09

22 - jpod



Douglas Coupland.
Tenho uma teoria que um livro com capa preta é sempre bom, ou pelo menos se não estiver saturado com imagens, fotografias ou letras pouco discretas. Não me tenho dado mal com esta teoria. A partir de agora vou estendê-la aos livros de capa branca. Também resulta, seja com aqueles policiais da colecção Noites Brancas, seja com o que me apareceu agora à frente, chamado jpod, escrito por um escritor chamado Douglas Coupland. Que me provoca uma sensação bastante confusa. Porque tenho muita dificuldade em confessar-me abertamente adepto (não gosto de fãs) de um escritor de anti-heróis, de personagens que fazem tudo o que podem para sair dos cânones sociais existentes. É confuso: existe um escritor que passa a vida a escrever sobre personagens claramente não alinhadas com a sociedade, mas que depois lhes banaliza a vida e quer demarcar-se ainda mais dessa sociedade dizendo: ei… ok que vocês não são lá muito normais, mas eu sou mais anormal ainda, porque consigo escrever livros inteiros sobre a seca que a vossa vida é. Tipo: caricatura gajos meios lixados da cabeça que por sua vez caricaturam a sociedade e os seus tipo normais. Até me parece bem, malhar nos geeks, nerds, artistas, intelectuais e afins, porque no fundo até sabemos que eles têm o que nós, normais, não temos. Nósnormais. Gosto. Vou passar a utilizar este termo… Concretizemos. Jpod é um escritório de programadores de jogos de consola em que o único requisito é fazer o que se quer ao mesmo tempo que se trabalha. Tipo um Google só com dementes. Existem 4 ou 5 pessoas cujo principal objectivo é terem nomes esquisitos com motivo para o ser e serem capazes de diálogos geniais. Detesto fazer resumos propriamente ditos dos livros, mas não resisto a uma enumeração barra citação:
Ethan, nome normal, pai eterno figurante de papéis sem falas em filmes obscuros, campeão de danças de salão e que ultimamente anda a fazer sexo com uma antiga colega de liceu dele. Mãe plantadora barra dealer de marijuana, com contactos a vários elementos do submundo, que hora seduz, ora cobra ora mata. Irmão promotor imobiliário com ligações ao submundo, nomeadamente à importação ilegal. De chineses. Ethan está sempre disponível para a família, fazendo sempre um ar de enfado enquanto esconde a namorada do pai, enterra o namorado da mãe ou esconde e depois dá banho a 20 imigrantes ilegais chineses do irmão. É o maior lançador de desafios inverosímeis aos colegas de trabalhos, tipo escreverem uma carta ao Ronald MacDonald a convencerem-no a pinar com eles…
Mark Mau, Bree e Caithlin. Nomes normais para pessoas menos normais. Na mesma onda…
Cowboy do Cancro. Não sei porque se chama assim. É viciado em sexo anónimo. Isto não tem nada a ver com o nome. Nem com o resto.
Fulano de Tal. É o meu preferido. Fulano nasceu no meio de uma comunidade lesbo-hippie, sendo a sua mãe a principal orientadora barra fundadora da dita comunidade. Cresceu almejando a normalidade, bebeu coca-cola aos 15 anos e comeu carne pela primeira vez à volta desta altura, também. Foi tamanho o trauma que fulano só sonhava ser uma pessoa normal. Ao atingir a maioridade, mudou o nome para Fulano de Tal e passou a só fazer as coisas que a maioria das pessoas fazem. Todos os seus actos e gostos são escolhidos estatisticamente de maneira a serem iguais ao que a maioria das pessoas faz e gosta.
Todos juntos, envolvendo-se saudavelmente com a sociedade envolvente, vão interagindo com naturalidade com, entre outros, Kam Fom, gangster chinês omnipresente, com ideias super claras e um raciocínio extremamente bem articulado, igualmente fanático por danças de salão, e cujo principal defeito é não ter sentido de humor. Nenhum. Este tipo de escrita confunde-me, pois não é preciso ser muito esperto para ver quão vazia ela é em termos de conteúdo. Mas diverte-me, porque é certeira na caracterização das situações que descreve. O problema é que as situações descritas não são importantes, nem sérias, nem produtivas, nem nada que se pareça. Mas são divertidas e fazem puxar pela cabeça e são tremendamente originais. Dá a sensação que o Douglas Coupland é uma reflex digital super rápida e com uma resolução monstruosa, que disseca na perfeição tudo aquilo m que põe a objectiva, conseguindo fotografias bonitas e super nítidas. Mas nunca aponta a máquina para nada de sério, limitando-se a fazer fotos instantâneas e puramente hedonistas. Ele escreve sobre nada para se divertir o que, tenhamos paciência, não é lá muito bom. Mas consegue também divertir-nos a nós, que o lemos e isso, tenhamos paciência, é bastante bom. A mim, faz-me sentir que sou das poucas pessoas do mundo que consigo perceber as suas imagens, que consigo compreender as suas descrições e faz-me sentir que compartilho a sua linguagem, ironia e inteligência. Faz-me sentir, enfim, inteligente. Quem não gosta de se sentir assim ? Melhor só sentires-te apaixonado...

19.1.09

21 - A rapariga das laranjas



Jostein Gaarder.
Li este livro por tua causa, porque as preferências partilham-se ainda que dificilmente coincidam. Custou-me muito começar. Um pai que descobriu uma doença terminal quando o único filho tinha quatro anos e que usou as últimas semanas de vida para escrever uma carta a esse mesmo filho. Uma carta em que se sentia na obrigação de lhe contar tudo aquilo que sentiu e que iria sentir nos anos que o filho viveu e nos que iria viver. Já imaginaste teres, neste momento, que dizer à pessoa de quem mais gostas no mundo, e o primeiro filho é sempre essa pessoa, tudo aquilo que algum dia sentirás por ele. Aqui há uns tempos tinha decidido abrir uma conta de mail para o João, em que lhe escreveria coisas ao longo do tempo e que lhe daria quando ele tivesse, sei lá, dezoito anos. Seria a minha maneira de fazer com que ele me conhecesse intimamente durante os anos em que eu mais dele gostei e que, curiosamente, são os anos em que eles não se apercebem disso. São nesses primeiros anos em que nós deitamos amor pelos olhos e eles quase não olham para nós. Curiosamente também, desde o dia em que soube da história deste livro, nunca mais lá escrevi nada. A angústia do pai acertou-me tão em cheio que senti um arrepio gelado de que nunca mais me esquecerei. Ainda assim, num fim de semana de maior carência, resolvi começar a ler o livro e fiquei imediatamente surpreendido pelo tom com que o pai escrevia, leve, saudável e divertido. Contava ao filho como tinha encontrada as primeiras vezes uma rapariga que andava sempre carregada com um saco de laranjas, facto para o qual ele arranjava novas teorias todos os dias. Desde ela ser a brigada anti-escorbuto de uma expedição polar até ser a nutricionista responsável por um colégio de criancinhas. E contava ainda todas as tentativas que fez para a encontrar, e como a encontrou, e como ela novamente estava carregada com um saco de laranjas, e como ele novamente não conseguiu dizer nada que não fossem disparates, e como ele novamente o surpreendia com respostas encantadoras de tão incompreensíveis. E como ela lhe disse que se esperasse por ela seis meses poderiam ver-se todos os dias nos seis meses a seguir, e como ele aceitou, e como ela lhe escreveu um postal, e como ele quebrou o acordo e foi atrás dela para Sevilha, onde passaram dois dias juntos, dois dias esses que lhe foram depois descontados nos seis meses seguintes. E contou finalmente o que todos nós já tínhamos percebido, que a rapariga das laranjas era a mãe dele, do filho, mulher do pai que lhe estava a escrever a carta. E o filho, já bastante abalado por estar a conhecer intimamente um pai que não conhecia e não teria mais oportunidade de conhecer, alegrou-se porque estava também a conhecer intimamente a mãe que já conhecia e que teria ainda muitas oportunidades para melhor conhecer. E o livro já tinha passado de metade e eu ainda estava sentimentalmente intacto, mas não tinha grandes dúvidas de que isso iria acabar. E acabou, acabou quando o pai dizia ao filho que amanhã o iria levar ao infantário e que seria a última vez que isso iria acontecer, porque a seguir iria para o hospital ser internado. E piorou ainda mais quando o pai não conseguia dormir à noite e ia para a varanda olhar para as estrelas por não ter coragem de olhar para o filho e de repente o filho aparece na varanda e ficam os dois abraçados a ver as estrelas. E o pai sabe que é a última noite em que pode apertar com força o filho contra o peito e olha para os olhos do filho e vê a inocência estampada e sente que o está a trair, a abandonar, a ir embora sem saber o que o filho vai passar e naquilo que se vai tornar. E nesse momento, decide que preferia não ter vivido para nunca ter que passar por esta situação, de ter que abandonar a melhor parte de si. E, também nesse momento, eu assino por baixo, porque também preferia não ter vivido do que ter que passar por isso. E constato que este é um livro que não se partilha com ninguém, porque é demasiado devastador e não deixa nada de pé cá por dentro. A sério que não.