19.7.13

44 -a lula e a baleia












A minha família é constituida por  intelectuais em diferentes fases de desenvolvimento. O meu pai é um escritor que já teve sucesso e vendeu muitos livros,  mas no presente não tem quem lhe publique os livros. Goza no entanto de algum prestígio ainda, pelo depois do divórcio  não tardou a envolver-se com uma aluna que, curiosamente, era a parceira nao oficial do Luther. Luther... Aquele polícia inglês que tem o grande mérito de fazer séries com temporadas pequenas, tão pequenas que nem sequer chegamos a estranhar que ele não mude de roupa. Voltando meu pai e voltando ao divórcio, ele está a gerir esse processo claramente, ao ponto de ter entrado num esquema claro de compensação emocional, comprando uma vivenda igual à que tinhamos enquanto ainda eramos uma família.. Mas como o dinheiro dele é curto, a casa é decrépita, sem móveis e quase assombrada. O que faz que o meu irmão a deteste (à casa) enquanto que eu, em pleno rebentamento da testosterona mas ainda com um componente infantil muito saudável, a considero fixíssima. A minha mãe é uma escritora em fase de ascensão, ainda na fase de pré-publicar extractos no new York times. Tem um ar calmo, super controlado, é bonita e tem super jeito na relação connosco. Mas ninguém é perfeito e ela, sendo-o agora no presente, não o foi no passado, tendo-se fartado de trair o marido e, consequentemente, a família. Recorrendo, ainda por cima, ao cliché do pinar com o professor de ténis, um gajo super simpático de quem até eu gosto. O que me faz parar um bocadinho para pensar na posição do meu pai e na maneria como ele sente esta separação: a seres trocado, toda a gente diz que quer ser trocado por alguém melhor, para não sentir o vazio provocado por a nossa mulher já estar tão farta de nós que qualquer cliché serve. Eu, pessoalmente, prefiro esse vazio ào estado de raiva que sentiria todos os dias ao sentir que fui trocado e que, mesmo objectivamente, isso fez todo o sentido, porque fui trocado por alguém melhor. Meu Deus. Que pesadelo. Depois ainda há o meu irmão, interpretado pelo Mark Zukenberg três ou quatro anos antes de ter ido para a faculdade e ter roubado a idéia do Facebook a dois colegas pouco agressivos. O meu irmão, dizia eu,   que se move entre o nosso pai e a nossa mãe, apoiando o declínio do pai e criticando a ascensão da mãe. Move-se também entre duas namoradas, a dele, loira, bonita, honesta e cândida e a do pai, bonita, retorcida e interesseira, escolhendo, obviamente, mal. Ou seja, a morena, que por coincidência é aquela que o nosso pai anda a pinar para que a sensação de ser patético que lhe não descola da pele seja auto-justificada pelo sexo com uma adolescente e não pela falta de amor da mulher de quem efectivamente gosta. Por fim, resto eu, que me assumo desassombradamente como filisteu, tenho 12 anos, bebo, praguejo, jogo ténis com o namorado da minha mãe e preparo uma vida de rebeldia inconsequente. Mas chorei quando os meus pais nos disseram que se iam separar… Temos assim a chamada família disfuncional, que  atrai os incautos u enganar, que pensam que se pode tratar de outra ser outra família à beira de um ataque de nervos. Não é a mesma coisa...  É muito menos fixe. Resta ainda a lula e a baleia que, tal como eu tinha desconfiado a certa altura, eram as que estão penduradas no tecto do museu de  história natural de nova Iorque. Sendo um nome que não tem nada a ver com o filme, no fundo até acaba por o explicar. Quando vi a lula e a baleia original, penduradas no tecto do dito museu, pensei cá para mim que sendo uma luta bonita a que eles estavam a travar, era também completamente inútil, pois nem a baleia quer comer a lula, nem a lua quer comer a baleia. É como no filme, em que todos se magoam uns aos outros por defeito, sem nexo nem necessidade nenhuma, até porque toda a gente ainda gosta de toda a gente. E embora seja uma frase que pode ter algum impacto, quer por ser curta, quer pela fonética conferida pela repetição da primeira letra, traduz um conceito que eu não gosto. Disfuncionalidade por defeito. É... Não gosto mesmo.
a lula e a baleia

43-ruby sparks












Se tivesse que me apresentar devidamente, tipo dizendo qual a minha profissão e o que fiz e faço na vida, penso que me apresentaria como um escritor precoce. Escrevi um mega-sucesso aos dezassete anos e nunca mais fiz nada de jeito. Nem de jeito nem sem ser de jeito porque a verdade é que não fiz nada de nada. Estou preso naquilo que é o terror dos escritores que conseguem ultrapassar o terror daqueles que querem ser escritores e não conseguem. Ou seja, consegui ultrapassar o trauma da folha em branco e estou agora preso no trauma do segundo livro. Passo assim os dias a pensar se vou ser um one-hit case ou se ainda sairá mais alguma coisa de jeito dentro de mim. Passo os dias a tentar sonhar acordado,mas é à noite que tenho os sonhos que vale a pena, principalmente acerca daquela rapariga que tem qualquer coisa que mexe imenso comigo, mas que quando estou quase a descobrir o que é… acordo. Sorte que tenho um psicanalista inteligente, que me disse aquilo que eu deveria ter pensado logo, isto se fosse um escritor decente, e não um falhado completo que só escreveu um grande livro nos seus 15 anos de vida após ter aprendido a escrever. Escreve sobre essa rapariga, Zé… Foi o que ele disse. Vai daí, comecei a escrever. E então, de repente, um dia de manhã fui à cozinha e ela estava lá, a fazer-me ao mesmo tempo o pequeno almoço e um sorriso encantador. E olhava para mim como se vivesse comigo há temporões. Como nunca me preocupei com a lógica fundamental das coisas, com o sentido da vida e esse tipo de tretas, e como sempre fui consciente de que a boa sorte deve ser aproveitada, até porque é rara, decidi aproveitar. Se ela me conhecia tão bem, então eu também a conheceria a ela. E foi aí que a situação se tornou mesmo interessante, inquietantee até mesmo importante. É que ela conhecia-me meeeesmo bem.  Falava sempre dos assuntos que me estavam na cabeça, dizia as piadas que eu estava a pensar, fazia sexo de maneira a cumprir todas as minhas fantasias sem que eu tivesse que as verbalizar, ostentava um conjunto de tiques e maneirismos que eu achava lindíssimos, usava umas meias às riscas brutais… Graças a ela recuperei a minha segurança social e recomecei a escrever e escrevia cada vez mais. Sobre ela, principalmente. E quanto mais eu escrevia sobre o que esperava dela, o que sentia por ela, o que queria que ela fizesse, mais ela correspondia integralmente às minhas expectativas. Estava a tornar-se perfeito. E se há uma coisa que eu sempre soube é que a perfeição não existe porque se existisse já não era a perfeição. A perfeição, por definição, é intangível. E no entanto, ela estava ali; á minha frente. E mal eu percebi isto, começou lentamente a desmoronar-se. De repente ela começou a ficar errática, confusa, contraditória, implicativa. Tanto me queria obsessivamente como nem sequer suportava a minha presença. Cada manhã nunca sabia o que esperar dela. Parecia que ela ia à caixa de correio buscar as instruções diárias que iria seguir no seu comportamento. Inevitavelmente, os humores dela começaram a reflectir-se na inha escrita, que era onde eu vertia todas estas angústias. E quanto mais eu escrevia sobre o pior que ela se estava a tornar, pior ela se tornava. Havia ali uma espécie de coerência doentia. Quanto mais eu escrevia coisas boas sobre ela melhor ela se portava e quanto mais eu escrevia coisas más pior ela ficava. Então finalmente percebi. Eu não estava a escrever sobre ela, sobre a sua personalidade e o seu comportamento. Eu estava a escrevê-la a ela. À sua personalidade. Ao seu comportamento. Eu tinha-a inventado e ela era a projecção sem dúvida real de tudo o que eu tinha de bom e de mau dentro de mim. Ela fazia tudo o que eu escrevia. Cantava, dançava, falava francês, fazia sexo, ria, chorava, tinha saudades de mim, ladrava… Tudo o que eu queria. Tudo o que eu escrevia. E embora tenha chegado a abusar um bocadinho disto, cheguei à conclusão que tinha que libertá-la. E, assim sendo, escrevi-lhe uma nova memória e escrevi-lhe a capacidade de decidir por lívre arbítrio. E embora sinta muito a falta dela, sei que se algum dia nos tornarmos a encontrar, tudo vai correr melhor…

3.7.13

42-mr nobody


Jaco Van Dormael
Se eu fosse sensacionalista e se estivesse a tentar arranjar o nome para um filme, apresentar-me-ia como sendo Ninguém e a partir daí armaria tamanha confusão existencial que rapidamente me esqueceria do que vim aqui dizer. Pragmático como acho que sou, direi apenas que me chamo Nemo e não, embora a minha vida tenha dado um filme, não sou um peixe. Chamo-me Nemo Ninguém e começo pelo fim, que é o facto de ter 146 anos e ainda não ter morrido. Sou o último ser  humano a quem foi permitido viver a totalidade da sua vida natural, sendo que nesta altura todos os meus colegas de espécie tem a sua morte ainda melhor programada do que tiveram a sua vida. Também não me vou perder a discutir as vantagens e desvantagens da mortalidade programada. Os puristas dizem que a surpresa é boa, mas não é a morte uma surpresa má? Por outro lado, obedecer à ordem de ter que morrer amanhã, ou depois de amanhã, é uma coisa bastante castrante. Digo eu. Sei lá. Enfim, não é problema que eu tenha, porque a mim vão-me deixar morrer naturalmente. Sem me chatearem. Até porque já me chateiam o suficiente a querer sabes coisas da minha vida. Tipo duas vezes por semana tenho que contar a minha vida toda a um tipo careca com a cara e a cabeça completamente tatuada, num padrão maori mas a fugir para o fino. Tipo, não é nada bonito, mas ficaria bem num filme, que é o que isto é. Presumo que eles, os do futuro, queiram de alguma forma registar para a posteridade a história da vida do último homem livre, mas eu troco-lhes as voltas porque se há coisa que aprendi nestes anos todos é que a vida é demasiado rica para ser vivida apenas de uma maneira e o facto de tomarmos determinadas decisões e de seguirmos determinados caminhos não é definitivo.De facto não possamos fazer tudo aquilo que queremos, até porque, seja qual for o nosso grau de egoísmo, acabamos sempre por magoar alguém ao fazermos com que esse alguém viva o papel que lhe destinamos na nossa vida e não o papel que tem direito na vida dela. isso não seria justo... nem correcto... O que eu constato hoje é que se os sentimentos que nos orientaram durante a vida foram suficientemente fortes, então chegamos a esta altura e é como se tivéssemos vivido as vidas todas que quisemos. Olhando para trás, chega-se à conclusão que certas pessoas te acompanharam toda a vida, estiveram sempre na tua cabeça e isso, constato agora sem a mínima dúvida, é viver. Tipo neste momento, eu tive três vidas e todas tiveram a mesma intensidade de sentimentos. Em cada uma delas fui feliz e infeliz, mas em todas elas eu vivi, sendo que à beira da morte isso é sem dúvida o mais importante. Dizem que existem momentos chave nas nossas vidas, em que tomamos decisões que nos vão condicionar para sempre, que nessas decisões escolhemos umas coisas em detrimento das outras, e que o que não escolhemos é para sempre afastado das nossas vidas. A verdade é que isso não é verdade. As escolhas que se fazem são momentâneas e condicionam de facto a maneira como vivemos naquele instante, mas visto de longe, e desde que os sentimentos permaneçam fortes, a importância do que não viveste é igual à importância do que viveste. No limite, a única coisa que interessa é o quanto as coisas ainda significam para ti, porque é isso que te fica a acompanhar na eternidade, e não propriamente os momentos passageiros. o momento chave foi quando tive que decidir se ia no comboio com a minha mãe ou se ficava na plataforma da estação com o meu pai. 
Se tivesse ido no comboio com a minha mãe, ela ia acabar por arranjar um marido que iria ter uma filha chamada Ana mais ou menos da minha idade e  iríamos apaixonarmo-nos terrível e fisicamente, até que os nossos pais iam perceber e, usando isso como pretexto, separar-se-iam e separar-nos-iam... e eu depois ia passar o resto da vida à procura e à espera de a encontrar, até que finalmente isso ia acontecer em plena Grand Central Station, para logo a seguir a perder por causa de uma chuvada repentina que iria borratar o número de telefona que ela escreveu imprudentemente num lenço de papel com tinta que devia ser permanente mas claramente não o foi...
Se tivesse ficado na plataforma com o meu pai, iria tratar dele ao longo da sua doença, tipo fazendo-lhe a barba, lembrando-lhe quem ele é, tomando banho sentado com ele na banheira enquanto o chuveiro nos pinga copiosamente aos dois e eu já não sei se estamos a falar de gotas de água ou gotas de lágrimas, até que lhes provo o sabor, só para confirmar aquilo de que já desconfiava. E um dia ia encontrar uma rapariga chamada Elisa, pela qual me iria apaixonar bastante e a qual me disse logo quando a conheci que nunca se iria esquecer de um ex-namorado qualquer, e muitos anos depois, casado com ela e com três filhas lindas, iria ter que viver com o seu estado paranóico e mesmo assim ia dizer-lhe que nunca a deixaria, nunca nem por nada enquanto ela berrava em plenos pulmões no meio da rua; à chuva, com as nossas filhas a assistirem envergonhadas e tristes por dentro da janela...
E no fim deste filme que vocês viram, no fim deste filme que foi não só a minha vida mas todas as minhas vidas, a conclusão a que eu chego é que se não é facil tomar as decisões correctas porque não se conhece o futuro, então conhecendo-o, torna-se ainda mais difícil saber se as decisões que se tomaram foram mesmo as mais correctas...
mr. nobody

alargamento de horizontes

nas prateleiras também se arrumam filmes...