25.5.17

93 - As primeiras quinze vidas de Harry August


Claire North.
É tipo uma reencarnação localizada no género, no tempo e no espaço. Em rigor, contraria todas as características conhecidas de ressurreição, porque o renascimento não depende em nada daquilo que se fez na vida anterior e, para além disso, é-se sempre humano e vive-se sempre a mesma vida. Isto no sentido em que se nasce, vive e morre, para depois tornar a nascer no mesmo dia, no mesmo local, filhos dos mesmos pais, e com memória completa daquilo que se viveu na vida anterior, permitindo assim viver a vida de uma forma diferente. Permitindo evitar erros ou tornar a cometê-los de uma forma mais espetacular. Claro que isto não acontece a toda a gente. Apenas cerca de 1 em cada 500.000 humanos nasce com essa capacidade e a sua designação é, adequadamente, ouroborianos, de ourobouros, a serpente que devora a própria cauda e que se pode considerar que é um ciclo sem fim, sempre a voltar ao ponto de partida. Os ouroborianos tem assim a possibilidade de levarem ao limite o aforismo de Samuel Becket, que dado o meu amor por frases curtas e a minha alguma predileção por ser do contra,  sempre se aluvou (ajustou como uma luva) a mim. Tentar, dizia ele. Tentar outra vez. Falhar. Falhar melhor. Se arrependimento matasse, dizem os brasileiros, toda a gente morria. O que é verdade, exceto para estas pessoas, que não morrem porque não se arrependem e não se arrependem porque corrigem os seus erros de uma vida para as outras. Harry, o protagonista, nasceu no princípio do século (vinte, acho eu), produto de uma apropriação sexual mal consentida de um patrão enganado pela sua mulher sobre uma criada grau 3 na escala Downtown Abbey. Foi tipo um ato sexual do género quem não grita muito alto consente, que se repercutiu no futuro, uma vez que o pai de Harry nunca disse a ninguém que o era. Portanto, Harry nasceu numa casa de banho de uma estação de comboio numa noite fria de inverno e quase não nascia a tempo de ver a mãe escolher-lhe o nome antes de morrer. Viveu adotado pelos, sei lá, caseiros, rendeiros ? e olhado de lado pela família do pai, que percebeu mais ou menos que tipo de comportamento lhe tinha dado origem. Sai de casa, combate levemente na guerra, forma-se não sei em quê e morre. Nasce a segunda vida e lida já melhor com a falta de reconhecimento do pai, o desprezo da família, a alguma falta de afeto dos pais adotivos e todos os restantes ingredientes que compõe a vida de uma criança infeliz. Vai novamente para a guerra mas escolhe melhor o sítio, forma-se noutra coisa que também não me lembro, arranja um emprego ligeiramente melhor e morre outra vez. Na terceira vida já é ele a bulizar os outros na escola, já foge de casa mais cedo, já passa a guerra na Escócia a arranjar aviões (longe dos perigos da frente, portanto), forma-se em medicina e... casa-se com Jenny. isto é importante porque se casou por amor, o que costuma implicar que estava apaixonado pela mulher, o que costuma implicar que quer compartilhar tudo com ela, o que costuma implicar superfelicidade porque geralmente as mulheres adoram os maridos que não tem segredos para elas. Não implicou. Jenny, quando Harry lhe contou tudo, implicou ferozmente com esta imortalidade, chamemos-lhe assim, monogámica e resolveu, não por-se a milhas mas pôr Harry a milhas, internado-o. E não acreditando lá muito no que ele lhe contou. Começando a acelerar, o médico do hospício (leia-se hospital mental, para as pessoas mais teimosas :P) torturou-o e isso fez com que o clube Cronos fosse salvá-lo. Cube Cronos? Pois... Chegou a altura de abandonar a história e teorizar um bocadinho. O clube Cronos era uma associação de ouroborianos que já viveram bastantes vidas e que tratam dos membros recém-chegados à família. Ricos e cheios de sabedoria acumulada em bué de vidas consecutivas, dedicavam-se a ajudar os recém ouroborizados e, a menos que me tenha escapado alguma coisa, a nada mais. Desperdício, apetece dizer. Então esta espécie de iluminatti imortais que já viu tudo e sabe como tudo se vai passar não faz nada que não seja olhar um bocadinho para o seu umbigo ? Parece que não era apenas isso, ou melhor, era, mas para o fazerem, inventarem uma maneira engenhosa de passar a informação. Como já lá vão duas semanas que escrevi a primeira parte deste texto e 3 semanas que acabei o livro, não vai ser fácil. Aliás, e em rigor, penso que intui a ideia, mas como nunca a verbalizei, a verdade é que não sei se percebi ou não. Hora da verdade. imaginemos que um ouroboriano nº 1 (OB1) nascia em 1900 e vivia até ao ano 2000. Acumulava uma vida de conhecimentos e quando nascesse na segunda vida,lá para os 10 anos (quando já tivesse consciência da envolvente) contava tudo a um OB2, que tivesse nascido em 1820. Assim sendo, OB1 contava a OB2 em 1910 tudo o que se tinha passado até 2000. Como OB2 tinha 90 anos em 1910, estava quase a morrer, portanto imaginemos que morria no dia a seguir. Renasceria novamente em 1800, com os conhecimentos da sua vida até 1910, conhecimentos esses que incluiriam a vida de OB1, até 2000. Portanto, OB2 com 10 anos de vida saberia o que se iria passar até 2000. E agora imaginemos que OB2 contaria tiudo a OB3, que em , sei lá, 1810, tivesse 90 anos e fosse morrer logo a seguir. A situação seria:

  • 1810 - OB2 tem 10 anos e recebeu informação de OB1, sabendo tudo até 2000.
  • conta tudo a OB3 Q, que nasceu em 1720 e que em 1810 tem 90 anos; 
  • OB3 morre logo a seguir, e renasce novamente em 1721, sabendo tudo desde 1720 até 2000, uma vez que incorporou os conhecimentos de OB2 e OB1.


Ao fim de algumas gerações, toda a gente do Clube cronos passou a saber tudo o que se ia passar, sendo essa vantagem capitalizada para (por exemplo via apostagem) enriquecerem todos. E depois, com o poder do dinheiro e do conhecimento, havia os que apenas viviam em regime de carpe ciem, e havia os outros que tentavam mudar o mundo. Disseminando o conhecimento futuro de uma forma mais ou menos discreta no presente, e isto em várias iterações (leia-se vidas), conseguiam que a evolução da sociedade fosse sendo mais rápida de iteração (leia-se vida) para iteração (leia-se vida outra vez). confuso? Nem por isso. Vamos lá a ver, centrando-nos, por exemplo, no Newton.

Um belo dia, lá para 1700, momentos antes de lhe car a maçã, alguém lhe atira, sei lá, com um melão, de maneira a acertar-lhe na cabeça. Em vez de constatar a existência da gravidade, ia logo despachar, para além disso, as outras leis todas. O princípio da inércia porque se o melão estava parado  e de repente lhe caiu na cabeça, isso deveu-se com certeza a alguma força que nele foi aplicada. A segunda lei porque sentiu também na cabeça, a massa do melão e o que lhe doeu deveu-se certamente à velocidade com que se aproximava cada vez mais da sua cabeça, naqueles segundos em que durou a trajetória e em que ele nada pode fazer para o evitar. Por fim a  lei d acção reacção porque depois de levar com o melão no melão, despediu o jardineiro por laxismo. Ao descobri as 3 leis de seguida, pode poupar muito tempo e chegar às outras descobertas mais cedo. E assim sendo, todos o seus discípulos fizeram as suas descobertas derivadas das dele mais cedo, etc, etc. Quando chegaram ao Einstein, nessa vida, já nada era relativo, uma vez que já estava tudo percebido, Vai daí ele seguiu logo para o campo unificado e foi sempre a abrir.

A verdade é que estas antecipações do conhecimento causavam inevitavelmente que a Terra acabasse cada vez mais cedo, por isso o clube cronos tentava contrariar aqueles que tentavam acelerar a evolução, e no fundo é esse o enredo do livro. E quando os apanhava, fazia-lhes do pioria para evitar as acções deles, desde tentar matá-los à nascença, impedi-los d enastre, etc. Aqui, confesso, a cena começa a ficar algo sinistra e desconfortável de pensar sobre. Por isso, vou parar aqui. E agora.