29.12.08

20 - O afinador de pianos


David Mason
Era uma vez um afinador de pianos que morava em Londres. Super talentoso mas pouco sociável, talvez mesmo um pouco infantil. Foi o que me pareceu a avaliar pela mulher, loira autoritária e por pequenos pormenores da sua rotina, tipo enganar-se no caminho para casa, ou atrasar-se duas horas para chegar a casa e depois mentir à mulher dando desculpas pueris diferentes das coisas pueris que esteve a fazer. Claramente um artesão dotado mas meio aparvalhado, vindo mesmo a calhar o facto de ser inglês. Um dia, recebe uma carta do exército a convocá-lo para uma reunião com um coronel que rápida e eficazmente lhe diz o que a Rainha dele pretende. Na Birmânia existe um Major Médico com umas ideias muito sui generis sobre como efectuar a colonização, ideias que por muito que horrorizem o exército, apresentam resultados muito bons, conseguindo que o império vá crescendo sem ter que se disparar muitos tiros. Um exemplo do tipo de pessoa que o Major Médico era: um dia comandava um pelotão de reconhecimento pelo meio da selva birmanesa quando este começou a ser atacado. Impassível, enquanto os seus soldados se atiravam para o chão, o Major Médico tirou uma espécie de flauta do bolso e começou a tocar umas notas esquisitíssimas. Os tiros continuaram a cair à sua volta e ele continuou a tocar até que os tiros diminuíram e pararam. Desta vez contra o silêncio, o médico continuou a tocar até que se começou a ouvir, vindo do meio das árvores, uma flauta a tocar as mesmas notas…. A expedição prosseguiu até ao seu destino sem mais problemas e ainda com música extra… O Major tinha pedido ao exército um piano de cauda Erard para o forte que tinha construído no meio das montanhas birmanesas e esse piano, de entrega difícil e contrariada, se calhar por essa razão, desafinara. Sendo o major um inglês de gema (apesar de por esta altura já andar vestido com sais birmanesas), recusava-se obviamente a tocar num piano desafinado. Vai daí, tratou de exigir um afinador de Erards, sendo essa a razão pela qual Edgar (o afinador) acabou por ter aquela conversa com o coronel e lhe disse, com um simples aceno de cabeça, que sim, que ia até à Birmânia afinar o Erard. E foi, numa daquelas viagens que toda a gente sabe que mudam a vida de quem a faz. Não imaginava ele é que ia mudar a sua definição. De vida. Vou parar com a descrição da história. A ideia destes textos não é fazer resumos, mas sim falar sobre ideias interessantes que os livros apresentam, ou então sobre sentimentos que suscitam ou então sobre qualquer coisa que valha a pena que não seja contar o fim de história em meia dúzia de palavras. Mas é aí que se me depara um problema. Não me lembro de grandes sentimentos nem pensamentos nem nada do género que o livro me tenha provocado. Lá ao longe, ainda ví as névoas de umas paisagens distantse no meio do montanhas inacessíveis que escondiam algo de diferente e de único, mas essas imagens rapidamente desapareceram e, para dizer a verdade, penso que as tirei retirado de um outro livro, chamado Horizonte Perdido, de um escritor chamado James Hilton que nele descreveu Shangri-La, o paraíso perdido… Assim sendo, acabei por não perceber como é que um livro com uma ideia tão boa e original acabou por me deixar meio morno e sem grandes emoções. Após pensar um bocadinho, penso que sei porquê. Porque é um livro super inglês, metódico, conciso, rigoroso, competente e bom. Apenas não acende grandes chamas em nós. Talvez na lareira,,, Não. Até porque o livro é bom e, curiosamente, tem aquilo a que se chama boa imprensa. Toda a gente diz que gostou muito. E gostei. Muito é que não.

9.12.08

19 - A sombra do vento



Carlos Ruiz Zafon.
Comecei a ler porque andava desde há algum tempo à procura de um romance de grande fôlego, em que se contasse verdadeiramente uma história com princípio meio e fim. Em que houvessem personagens, emoções, acontecimentos marcantes, em que se passassem coisas. Paralelamente, várias pessoas me disseram que era um bom livro, por isso, na busca de uma espécie de reencontro com os romances de 500 páginas, lá fui eu, e comecei a ler um best-sellers. Não que isso me chateie por aí além... Muitos dos livros que eu mais gostei de ler, note-se que não disse os melhores livros que li, eram best-sellers. Gostei de ler os livros de Michael Crichton, do Dan Brown,do Harry Potter, do James Bond, do Saramago, do Sherlock Holmes, e por aí fora... Vai daí pensei que estaria a começar um livro que teria, ao mesmo tempo a leveza e o interesse de um best-seller e qualquer coisa mais, cujo cheiro eu sentia de uma forma muito ténue. Até porque o meu nariz costuma acertar nestas coisas... E logo ao princípio constatei isso... O livro começa com um pai e um filho viúvos que ainda mantém o hábito de falar com a mãe morta no meio da sua tristeza profunda. Mas é uma tristeza com uma coisa boa, é uma tristeza compartilhada, vivida a dois pelos dois. Ambos sabem o que perderam, do quanto gostam de quem perderam e que só se têm um ao outro, por isso não vale a pena negarem-se nem complicarem. Um dia, o pai leva o filho a um sítio chamado o cemitério dos livros perdidos, onde cada pessoa pode, entre um labirinto tipo biblioteca secreta do nome da rosa, escolher o livro que definirá o resto da sua vida. Para mim já não era preciso mais nada. O livro estava ganho logo ali nas primeiras páginas, o que me provocou logo uma desilusão resignada. Quando uma boa ideia desse calibre aparece logo nas primeiras páginas, é certinho que o resto do livro é sempre a descer. E foi o caso. Mas, mesmo assim, foi bom na mesma...Continuando e sistematizando, podia-se dizer que é um livro sobre um livro, sobre o livro da vida do filho de um livreiro, uma vez que tudo o que se passa na história (até o titulo desta) é motivado por um livro, mas não estaríamos a ser muito factuais. Porque o que move o personagem principal (Daniel) não é o livro em si, mas sim o escritor que o escreveu. Será então um livro sobre um escritor (Julian)? Também não, porque o escritor desapareceu, e embora a sua busca por parte de Daniel seja de facto o que o livro conta, no fundo o que nos é principalmente contado é a história das pessoas que viviam à sua volta. E é ao lermos sobre a vida de todas estas pessoas que nos é dado um vislumbre da Espanha pré guerra civil, do estado repressivo, das confusões ideológicas, da inconstância do poder. Por isso, por serem apenas vislumbres, também não podemos chamar a este livro um romance de época nem muito menos um romance histórico. Assim sendo, a única coisa que podemos dizer é que é um livro sobre pessoas e, pensando bem, essa é a definição de romance por definição (a repetição de definição foi intencional; não me enrolei no raciocínio). E que pessoas? De Daniel, rapaz sem nenhuma característica especial que se limita a perseguir o livro da sua vida, do pai de Daniel, livreiro simultaneamente amargurado com a vida mas doce com o filho e com o mundo, de Clara, rapariga cega que adora ler (que lhe leiam), que foi a primeira fixação de Daniel e cujo desempenho sexual perturbador ainda hoje consigo vislumbrar, do tio de Clara, que só falava com palavras esdrúxulas, do inspector da polícia de cujo nome no quiero acordar-me J , de Fermin, homeless recuperado, viril como um miúra mas saco de pancada da polícia, cujos diálogos, erudição e sensatez sentimental valem só por si o livro, de Miquel de Moliner, discípulo precoce de Freud, analista implacável e infalível do género humano (ele, não Freud), poço de sentimentos puros e meu personagem preferido do livro e de Julian, o escritor. Julian Carax, que escrevia livros que não se conseguia parar de ler mas que ninguém comprava, que toda a gente à sua volta adorava e não conseguia deixar de adorar, mas que nunca gostou de si próprio. Que todas as mulheres (a mãe, Nuria, Penélope) amavam mas que nenhuma conseguiu ser feliz com o seu amor. E que, acima de tudo, escreveu um livro que provocou uma confusão tão grande no romance que nem mesmo leitores esclarecidos como eu, conseguem depois dizer coisa com coisa quando o tentam resumir. Duas certezas. Uma: gostei muito. Duas: não é uma comédia...