19.1.09

21 - A rapariga das laranjas



Jostein Gaarder.
Li este livro por tua causa, porque as preferências partilham-se ainda que dificilmente coincidam. Custou-me muito começar. Um pai que descobriu uma doença terminal quando o único filho tinha quatro anos e que usou as últimas semanas de vida para escrever uma carta a esse mesmo filho. Uma carta em que se sentia na obrigação de lhe contar tudo aquilo que sentiu e que iria sentir nos anos que o filho viveu e nos que iria viver. Já imaginaste teres, neste momento, que dizer à pessoa de quem mais gostas no mundo, e o primeiro filho é sempre essa pessoa, tudo aquilo que algum dia sentirás por ele. Aqui há uns tempos tinha decidido abrir uma conta de mail para o João, em que lhe escreveria coisas ao longo do tempo e que lhe daria quando ele tivesse, sei lá, dezoito anos. Seria a minha maneira de fazer com que ele me conhecesse intimamente durante os anos em que eu mais dele gostei e que, curiosamente, são os anos em que eles não se apercebem disso. São nesses primeiros anos em que nós deitamos amor pelos olhos e eles quase não olham para nós. Curiosamente também, desde o dia em que soube da história deste livro, nunca mais lá escrevi nada. A angústia do pai acertou-me tão em cheio que senti um arrepio gelado de que nunca mais me esquecerei. Ainda assim, num fim de semana de maior carência, resolvi começar a ler o livro e fiquei imediatamente surpreendido pelo tom com que o pai escrevia, leve, saudável e divertido. Contava ao filho como tinha encontrada as primeiras vezes uma rapariga que andava sempre carregada com um saco de laranjas, facto para o qual ele arranjava novas teorias todos os dias. Desde ela ser a brigada anti-escorbuto de uma expedição polar até ser a nutricionista responsável por um colégio de criancinhas. E contava ainda todas as tentativas que fez para a encontrar, e como a encontrou, e como ela novamente estava carregada com um saco de laranjas, e como ele novamente não conseguiu dizer nada que não fossem disparates, e como ele novamente o surpreendia com respostas encantadoras de tão incompreensíveis. E como ela lhe disse que se esperasse por ela seis meses poderiam ver-se todos os dias nos seis meses a seguir, e como ele aceitou, e como ela lhe escreveu um postal, e como ele quebrou o acordo e foi atrás dela para Sevilha, onde passaram dois dias juntos, dois dias esses que lhe foram depois descontados nos seis meses seguintes. E contou finalmente o que todos nós já tínhamos percebido, que a rapariga das laranjas era a mãe dele, do filho, mulher do pai que lhe estava a escrever a carta. E o filho, já bastante abalado por estar a conhecer intimamente um pai que não conhecia e não teria mais oportunidade de conhecer, alegrou-se porque estava também a conhecer intimamente a mãe que já conhecia e que teria ainda muitas oportunidades para melhor conhecer. E o livro já tinha passado de metade e eu ainda estava sentimentalmente intacto, mas não tinha grandes dúvidas de que isso iria acabar. E acabou, acabou quando o pai dizia ao filho que amanhã o iria levar ao infantário e que seria a última vez que isso iria acontecer, porque a seguir iria para o hospital ser internado. E piorou ainda mais quando o pai não conseguia dormir à noite e ia para a varanda olhar para as estrelas por não ter coragem de olhar para o filho e de repente o filho aparece na varanda e ficam os dois abraçados a ver as estrelas. E o pai sabe que é a última noite em que pode apertar com força o filho contra o peito e olha para os olhos do filho e vê a inocência estampada e sente que o está a trair, a abandonar, a ir embora sem saber o que o filho vai passar e naquilo que se vai tornar. E nesse momento, decide que preferia não ter vivido para nunca ter que passar por esta situação, de ter que abandonar a melhor parte de si. E, também nesse momento, eu assino por baixo, porque também preferia não ter vivido do que ter que passar por isso. E constato que este é um livro que não se partilha com ninguém, porque é demasiado devastador e não deixa nada de pé cá por dentro. A sério que não.