Seth Grahame Smith
E eis-me novamente a cair vítima da praga que o Marco me
rogou e que era qualquer coisa como, tu nunca deixarás de ler apenas literatura
fantástica. Confesso que me começo a sentir preocupado, porque não sei já há
quanto tempo não leio nada de, chamemos-lhe assim, sério, ou seja, um romance
sentimental, um romance histórico, uma colectânea de poesia, um conjunto de
ensaios, um livro político, e neste momento, estivesse eu no sametime e estaria
a ir buscar o boneco amarelinho que, literalmente, rebola a rir. Como se, neste
momento da minha vida, eu tivesse e mínimo de paciência e vontade para andar à
procura do que outras pessoas acham que é importante e conveniente . Numa
altura da vida em que se acha que já se tem legitimidade para que esta consista
num infindável rol de momentos, na pior das hipóteses, muito agradáveis, é-me
completamente inaceitável (e a qualquer pessoa da minha idade que saiba
escrever) reger-me pelos padrões estético-culturais de terceiros. Se ainda
fosse de segundos, ou seja, de amigos ou conhecidos cujas opiniões e gostos eu
goste e respeite, ainda vá que não vá. Agora de desconhecidos… Nem pensar. Vai
daí, continuo a guiar-me pelo meu nariz e pelo meu comodismo e hedonismo, ou
seja, esqueçam lá isso de estar sempre a prender e a acrescentar cultura ao
cérebro e toca a pensar, pelo menos um bocadinho, no prazer instantâneo. Além
do mais, não estou muito preocupado com esta minha fase, porque ao menos ainda
me dá para ler e escrever. Podia limitar-me a ver televisão…Vai daí, Abraham
Lincoln, o caçador de vampiros... Porquê? Tenho algum interesse especial no
Abraham Lincoln ? Nem por isso. E nos vampiros ? Também já não. Confesso que o
Lestat ainda me interessou, mas a partir daí mais nenhum me chamou a atenção.
Com O Lestat já dizia, enquanto estava a ser entrevistado, não há nada para
descobrir e eles (os vampiros) andam todos a fingir. Então porquê ? Sei lá, mas
lá comecei. E então comecei pela infância de Abraham, vivida no meio de uma
pobreza tal que nem livros tinha, nem luz para os não ler à noite. Tinha dos
irmãos, um pai algo ausente e uma mãe doente, que um dia morreu, vindo ele a
descobrir bastante mais tarde que foi morta por um vampiro. No dia em que
descobriu isso, jurou vingança e luta até à morte, e matou o seu primeiro vampiro,
a golpes do machado com que vivia em comunhão total desde que era pequenino. Um
dia conheceu um vampiro chamado Henry que lhe disse algumas coisas
interessantes, depois de lhe ter dado uma traulitada na cabeça e de o ter
prendido num quarto de uma casa bastante interessante, na qual se entrava por
um daqueles poços antigos, com manivela, um telhadinho e um balde na ponta de
uma corda. E disse-lhe então o seguinte:
Que os vampiros eram como os homens em muitos aspectos e
que, consequentemente, não eram todos iguais. Não que houvesse vampiros bons e
vampiros maus. Não funcionava de uma maneira assim tão bipolar. Mercê das suas
próprias características, e olhando pelo prisma dos homens, não havia nem podia
haver vampiros bons. Da mesma forma que será difícil que as vacas ou os porcos
ou as galinhas, ou qualquer animal de que nós nos alimentemos digam que há
humanos bons. Tipo, se são bons, porque é que me querem comer ? Não havia,
portanto, vampiros bons, embora houvesse muitos vampiros que eram mesmo maus. Havia
era também alguns vampiros que, face à sua experiência de vida, ou se calhar
face à sua experiência de morte, aprendiam a valorizar a vida como algo
merecedor de respeito a nível geral, sendo que a vida inteligente, dotada de
sentimentos mereceria esse mesmo respeito a nível particular. Sendo os vampiros
incapazes de morrer, corrompiam-se inevitavelmente em termos morais ao viver
uma vida cheia de poder e isenta de limites. Dizia Henry a Abraham:
Depois de seres transformado, ficas mais forte, mais rápido,
mais inteligente que todas as pessoas à tua volta. Tens sucesso em tudo o que te propões fazer e descobres que
consegues bater em todos os homens de que não gostas e que algum dia te
trataram mal e que as mulheres adoram pinar contigo, E descobres ainda, tipo
bónus, que lhes podes beber o sangue depois de lhes fazer isso tudo. Descobres
a maneira de praticar cinco dos sete pecados capitais todos de uma vez, e
raciocinas que, se nenhum Deus te impede de fazer isso, é porque ou não tem mal
nenhum, ou não há Deus nenhum. E continuas, durante todo o primeiro século a
fazer isso. Comer, beber, pinar, matar... Mas tudo o que é bom cansa, e o facto
de não Ter limites desvaloriza os prazeres, por isso no segundo século viras-te
para o intelecto, para as artes, para a ciência, para a literatura, para as
viagens... E consegues aguentar-te mais um século assim, a desfrutar do prazer
intelectual, e começas a pensar que aquela raça humana é mesmo capaz de
produzir coisas belíssimas, e que se calhar não servem apenas para comer, beber
e foder, isto pela ordem inversa, obviamente, não somos selvagens... E começas
a virar-te para a filosofia. Por um lado pensas que já estás farto disto, que
já não tens mais nada que te entusiasme. Por outro lado, começas a apreciar cada
vez mais aquela raça que, além de se parecer tanto contigo, consegue fazer
tanto em tão pouco tempo de vida. E começas a achar que se calhar eles é que
são a raça superior, pois limitados como estão pela morte, não tem tempo para
se corromper. E vai daí, deixas de comê-los e passa a protegê-los e descobres
aqueles que dentro deles são os mais fortes e mais inteligentes e revelas-te...
Percebeste ?
Abraham percebeu e a partir desse dia, passou a matar
todos os vampiros que Henry lhe dizia, tornado-se assim num caçador de vampiros
profissional, com um casaco comprido preto cheio de truques dentro, tipo
Inspector Gadget. Paralelamente Abraham não descurou a sua carreira política e,
mais pormenor menos pormenor, chegou a presidente dos Estados Unidos. E mal lá
chegou, estourou-lhe nas mãos a Secessão dos Estados do Sul. E esta é a parte
mais fixe do livro. O sul era o paraíso dos vampiros, na América. E porquê ?
Porque era o sítio onde lhes era mais fácil de se alimentarem . E porquê ? Porque
era o único sítio onde se podia fazer desaparecer o número de pessoas que se
quisessem sem levantar questões.. E porquê ? Por causa da escravatura... Em
termos d emundo ocidental, os vampiros estiveram instalados durante centenas de
anos na Europa, tendo sido de lá expulsos depois da Revolução Francesa, em que
o povo passou a ser quem mais ordenava e em que deixou de se encarar como uma
inevitabilidade alguém comer os nossos camponeses todos. Ao ser conferida a
todos os cidadãos uma individualidade distinta, deixou de ser possível à
vampiragem comer o que queria impunemente e, para além disso, passou a haver
uma perseguição específica aos vampiros, tendo sido estes o principal alimento
das Guilhotinas de Robespierre. Vai daí que estes fugiram todos para a América,
onde passaram a ser os maiores apoiantes da escravatura e os principais
instigadores da secessão dos Estados do Sul, que iria levar logo a seguir à
Guerra Civil Americana. Apesar da luta encarniçada e desesperada dos vampiros,
Abraham venceu a Guerra Civil e erradicou a escravatura, fazendo com que, entre
muitas outras consequências, os vampiros fugissem dos agora Estados Unidos,
novamente para a Europa, onde o início de alguns totalitarismos racistas
ofereciam bons prenúncios quanto à possibilidade de vir a haver novamente
comida com abundância. Mas isso é já outra história. Abraham não teve muito
tempo para saborear a sua vitória. Primeiro mataram-lhe o filho mais velho e
depois, como toda a gente sabe, John Wilkes Booth, um vampiro actor, matou-o em
pleno teatro. No fim, Abraham, que durante toda a sua vida tinha proibido a
Henry que lhes ressuscitasse os vários filhos, não pode fazer nada quando Henry
o ressuscitou a ele, dizendo que há pessoas que são demasiado interessantes
para morrer...