Dean Koontz
Não restam muitas dúvidas que a agenda cultural de
quase todo o mundo ocidental é regido por Hollywood. E se acrescentarmos um B,
podemos contabilizar mais uns 1500 milhões de pessoas. Ou seja, o interesse das
pessoas sobre qualquer tema é potenciado quando Hollywood faz um filme sobre
esse tema, desencadeando depois desse interesse um fenómeno cultural que seria
para mim interessante se não tivesse como principal origem a intenção de os
estúdios fazerem dinheiro em merchandising. Não me chateia nada que as massas
passem a usar t-shirts do Batman, mas confesso que me chateio um bocadinho
quando as massas comecem a usar t-shirts do Batman. É uma daquelas
contradições internas que não consigo resolver. Sei que as pessoas têm de respirar,
mas chateia-me que respirem o meu ar e perto de mim. Enfim, isto tudo para dizer que existe
um personagem da literature que só mereceu aí uns 10 minutos de atenção dos
estúdios e que por essa razão ainda se encontra em terreno relativamente pouco
explorado, permitindo assim que se inventem coisas interessantes sobre si. Esta
conversa sobre os estúdios não é totalmente gratuita, da minha parte. É que, ao
querer conhecer um bocadinho melhor o autor, li o prefácio do livro (coisa que
não costume fazer) e descobri que este livro tinha sido contratado por um estúdio para fazer uma série mas que o autor se desentendeu com eles e resolveu
fazer o livro com a sua própria lógica. Passemos assim a ver se a lógica
artística tem mais valor acrescentado do que a comercial. Uma pergunta assim
tão complexa deveria ser difícil de responder. Mas é fácil. A resposta é: tem.
Ora vejamos:
Frankenstein
(que foi interpretado por Robert de Niro naquela que foi a sua pior
interpretação das muitas e todas más que fez) torna-se assim num manancial de
idéias para quem as quiser explorar, até porque a maioria das pessoas ainda
pensa que o Frankenstein é um monstro verde com parafusos a sairem pelas
temporas, tipo uma espécie de cornos versão tecno-industrial. Não é.
Frankenstein não era um monstro verde com parafusos nos cornos mas sim um
cientista louco que construiu um ser com componentes retirados de ladrões e
assassinos mortos, sendo que nem sempre respeitava as questõees de simetria
estética, ou pelo menos não as respeitava escrupulosamente. Tipo, dava-se ao
cuidado de pôr braços nos locais dos braços, mas não se preocupava muito em que
os braços pertencessem ao mesmo cadaver. Tipo podia ser orangotango do lado direito e galinha do lado esquerdo... A escritora que criou Frankenstein chama-se Mary e o nome que ela
escolheu para o Frankenstein foi Victor. Logo por aí se via que estava a
começar mal. No livro original, lembro-me de poucas coisas, mas arrisco a dizer
que me lembro das mais importantes. Se estivessemos a escrever um resumo, eu
diria que Victor Frankenstein criou um ser que pretendia que fosse humano e
ligou a ele o pára-raios do castelo, de maneira que mais tarde ou mais cedo um
relâmpago acabou por lhe acertar e por o trazer à vida. Depois, terei
adormecido, confesso, e só me lembro dde a criatura (o FrankenSon) fugir do pai
(Victor) saltando de pedra em pedra no meio de um pântano tipo, pantanoso…
E é a partir daqui que este livro arranca. Victor,
mercê do seu talento inquestionável enquanto cientista torna-se tipo o maior
especialista no planeta em engenharia genetica e torna-se também praticamente imortal
e podre de rico. E, durante 200 anos, continuous as suas pesquisas pelo que
hoje, no presente, criou uma nova raça de homens e mulheres cujo principal
objectivo é obedecer-lhe e com os quais pretende dominar o mundo, ou seja,
substituir a Raça Velha pela Nova Raça. Obviamente que esta substituição não
será completa, uma vez que lhe falta tempo para criar 7500 milhões de pessoas
novas, mas também que interesse é que isso teria se é sabido que todo o planeta
é controlado por umas 1000 pessoas ? Assim sabendo, Victor infiltra os seus
filhos nas posições chave para que, quando chegar a hora, eles possam iniciar a
revolta e tomar o controle. Tipo, números à parte, a traição dos clones contra
os cavaleiros Jedi. Os filhos de Victor são diferentes, tanto fisica como
psicologicamente. São superiores fisicamente porque são mais rápidos, mais
fortes, mais bonitos, etc. Tem dois corações e diversos outros melhoramentos
físicos, mas estão muito condicionados psicologicamente, porque estão impedidos
de processar os seus sentimentos de forma que contrarie o pai, ou seja, sentem
bastante (até porque têm dois corações) mas não podem canalizar todo esse
sentimento de forma natural. O que, está bom de ver, lhes cria loops internos
de dificil resolução, tipo o HAL no 2001 e, em ultimo caso, os leva à mais
profunda paranoia, tipo o Padre que não consegue lidar com a presença simultânea de Deus e do Pai (Pai Victor e não Deus Pai), ou tipo Erika, mulher
de Victor, que não consegue articular a beleza que encontra na arte com as
coisas que Victor lhe faz e obriga a fazer (na cama, entre outros sítios) ou
ainda o polícia que acha que os membros da Raça Velha devem ter uma qualquer
glândula que segrega a felicidade e começa a dissecar pessoas para encontrar a
dita glândula…
Obviamente que não foi apenas Victor que sobreviveu
estes 200 anos. A sua criação também. Chama-se Deucalião e, cumprindo o cliché,
tornou-se monge budista num mosteiro no Butão depois de ,previsivelmente, ter
feito muita asneirinha… Deucalião tem aí uns dois metros e meio e metade da
cara toda tatuada, para tapar as cicatrizes que Victor lhe fez quando ele
fugiu. Também previsivelmente, começa a sua carreira num daqueles Freak Shows
ou Feiras Populares tipo Carnivale, ou a do Big Fish em que, passo a citar-me do
texto anterior, “…em que havia mulheres com barba,
anões pintados e gigantes desengonçados, halterofilistas carecas de bigode
retorcido para cima e vestidos com peles de leopardo que lhes deixava
invariavelmente um ombro à mostra, adivinhadoras do futuro cegas, bonecos que deitavam
pela boca bilhetinhos com o que te ia acontecer no futuro e onde havia sempre,
mas mesmo sempre ao fundo uma roda gigante com ar de que se ia desfazer a
qualquer momento mas que nunca se desfazia. Era a altura em que toda a gente
parecia uma fotografia da Diane Arbus”. Mas não era bem por aí que eu queria
ir. Desviei-me porque ando cada vez mais atraído por esse universo, mas ainda
não chegou a altura de escrever sobre ele. Do que se passou entre a feira Popular
e omosteiro Tibetano, não sabemos, mas eis que Deucalião é avisado por um amigo
que Victor está vivo e de boa saúde em Nova Orleães, por isso corre para lá
onde se instala num cinema praticamente abandonado na companhia de um outro
refugiado de um freak show qualquer. A partir daqui o livro torna-se num
policial banal, em que a única coisa digna de registo é que o assassino em série
da praxe, desta vez, tinha começado a carreira a matar pessoas feias, mas como
eram muitas, desistiu e passou a matar pessoas bonitas, para lhes retirar as
partes mais bonitas e com elas fazer o ser perfeito. Isto lembra-me alguma
coisa. Alguéem que, com várias partes quer fazer um ser perfeito ? Como é que
se chamava esse livro ? Frankenstein…