27.5.12

32 - o circo dos sonhos


Erin Morgenstern.
Mais uma vez se cumpriu a maldição de não se poder dizer mal de um livro de capa preta. Maldição? Acho que sim porque me parece que já não sou eu a julgar o livro pela seu conteúdo mas sim a, chamemos-lhe assim, capa preta a condicionar-me, assim como se a sua própria existência, automática e obrigatoriamente despoletasse o processo do costume. Vejo o livro, saco-o, leio-o, publicito-o, suscito o interesse, compro-o … e ofereço-o. E no fim, já nem sequer sei se o que me motiva é o livro ou o processo, processo esse que é também um livro e que retrata o atractivo das coisas tortuosas. Ó e se eu sou tortuoso… Voltando ao livro, não ajuda o facto de se tratar de um livro sobre coisas irreais e mágicas, s obre desejos e vontades, porque a magia era uma coisa extremamente bem-vinda no presente e, quem escreve este livro, sempre no presente, sabe bem disso.
Por isso, até aqui se torna difícil avaliar se o que estamos a gostar é do próprio livro ou do sentimento que a magia nele contida pode, sei lá, extravasar um bocadinho que seja também para nós e resolver magicamente aquilo que, sem magia, não se consegue resolver.
Se o que estamos a gostar é da história, dos personagens e dos cenários (e que bonitos os cenários são) ou se gostamos ainda mais da sensação de estarmos a transmitir um bocadinho dessa especialidade a terceiros, com a esperança de assim mantermos nós também alguma especialidade a outros olhos…
Mas bolas, afinal li o livro ou não ? Li pois. E gostei ? Pá… não sei. Ultimamente não tenho gostado de muita coisa e, além disso, grandes partes deste livro foram lidas num clima de grande ansiedade, para não dizer outra coisa. Por outro lado, o livro é bom, bonito e talvez me permita a oportunidade de restabelecer pontes mentais. E então em que é que fico? Como é que me vou decidir?
Fazendo aquilo que cada vês sinto mais que devia fazer na vida real mas que, me tem custado a arrancar. Calando-me e deixando falar os outros. E quem falará ? Ele. Recorrerei então a uma ideia que retirei de um livro brutal que, penso eu, sou a única pessoa que lhe dá o devido valor. Chama-se Gog e está resumido algures lá para baixo.  Nesse livro, Gog fazia entrevistas imaginárias, que não aconteceram mas que deveriam ter acontecido. Imagino assim a minha entrevista imaginária a um livro chamado o Circo dos Sonhos…

- Sabes ler, livro? Ou apenas deixas que te leiam ?
- Sei ler.
- O que lês? Livros ?  J
- Leio as pessoas que me estão a ler enquanto me estão a ler.
- E como fazes isso ? Tens olhos em todas as páginas ?
- Isso interessa ?
- Acho que não.
- Eu também acho que não…
(…)
- Mas então se só lês pessoas não sabes o que escrevi lá em cima.
- Sei. Bastante bem. Fui-me apercebendo de tudo enquanto me lias.
- És muito perspicaz.
- Tu é que és transparente.
- Confesso que já me disseram isso.
- E eu confesso que tive ajuda.
- De quem?
- Dos meus parentes mais próximos. Da minha família.
- Da tua família da parte do papel ou da parte da tinta ?
- Da minha família da tua parte.
- Da minha parte?
- Sim. São todos aqueles livros em que tu passaste por este processo. Todos os livros que acabaste por dar, para compartilhar com ele um mundo próprio em que tudo é permitido. Jonhatan Strange e o Sr. Norrel, A rapariga que roubava livros, a Bruxa de Oz, os Reinos do Norte, o Amuleto de Samarcanda, Josh, o cordeiro, o Bairro, o Rapaz que chutava porcos, o Rapaz Ostra, o Reino do Dragão de Ouro…
- Então esse conjunto de livros existe mesmo… Não é uma invenção minha.
- Pois não.
(…)
- Voltando a ti.
- A mim livro?
- A ti livro. Descreve-te.
- Critico-me?
- Não. Para isso estou cá eu.
- Não estás a conseguir.
- Se tu ajudares…
- Está bem. Lá vai…
(…)
- Não me considero um grande livro. Quando as pessoas acabam de me ler sentem-se algo inquietas, com medo de não terem percebido tudo, de não terem apreendido nem metade da riqueza que eu tenho. Um grande livro impõe-se e satisfaz e isso foram duas coisas que não consegui contigo. Não me impus o suficiente para te fazer abstrair do que te ia na cabeça e, tendo ainda assim conseguido captar-te a atenção, não te vi a sorrir extasiado mas sim a levantar as sobrancelhas preocupado com o facto de não estares a perceber tudo aquilo que eu te estava dizer. Convenhamos: também não está ao alcance de qualquer um.
- Pois. E eu não sou lá muito inteligente.
- Pois não…
- Se calhar o problema é teu.
- Se calhar é.
- Tenta outra vez. E desta vez fala de ti, e não de mim.
(…)
- Começo com uma aposta entre dois mágicos em que um deles aposta a própria filha e o outro aposta alguém que nem sabe ainda quem será. E logo aí se coloca uma questão interessante. Quem está a se mais honesto? O pai que hipoteca a própria filha ou o outro que deliberadamente escolher alguém para ser hipotecado ? A ideia é cada mágico instruir o seu pupilo para que ganhe o torneio de magia, que se irá desenrolar ao longo de toda a vinda, até à morte de um deles. A mágica chama-se Célia e é super intuitiva e o mágico chama-se Marco e, parece-me assim, é mais do tipo racional. Célia passa a juventude a correr o mundo de circo em circo, com o pai. Marco passa a juventude fechado num quarto, a ler. Um dia, veêm-se os dois envolvidos na ideia de criação dum circo, patrocinado por um Sr. Super carismático chamado Lefévre. Célia arranja logo maneira de nele trabalhar como ilusionista enquanto que Marco consegue tornar-se o seu assistente pessoal. O circo  tem algumas particularidades interessantes. Tem muitas tendas em vez de uma só e cada artista faz o seu espectáculo dentro da sua tenda. Tudo o que existe no circo é preto e branco, e não preto ou  branco nem mesmo cinzento. Ou seja, no Circo dos Sonhos, ao contrário da vida real, as coisas podem ser de duas maneiras diferentes e duas coisas boas não são mutuamente exclusivas. E a indeterminação e a ambiguidade estão, na sua forma de cinzento, completamente proibidas. O circo dos sonhos só funciona à noite, mas funciona a noite inteira, nã é como eu, que só saio até às quatro. É feito para aquelas pessoas que ficam sempre até ao fim, mesmo que não se perceba porquê nem a fazer o quê, mas que, mesmo quando as coisas acabam, elas… continuam. O circo dos sonhos é feita para pessoas incansáveis, mas nunca diz onde vai aparecer nem avisa quando se vai embora. Simplesmente desaparece e viaja, sempre de comboio, para um sitio que os seguidores só descobrirão quando as noticias do primeiro espectáculo ecoarem vindas da nova localização. Simplificando, o Circo dos Sonhos é o único sítio onde o amor de Célia e Marco é possível, pelo que ambos se empenham em que se torne um sítio mágico e infinito, uma vez que sentem instintivamente que fora do circo esse amor é impossível. E assim, com os contributos sucessivos e iterativos dos dois mágicos, o circo torna-se uma coisa tão rica, bonita e completa que confesso ter dúvidas do grau  de compreensão que atingi. Apenas me ficaram os pormenores, sendo que tudo o resto se mistura como num… sonho. Pormenores, ainda assim, interessantes… uma contorcionista japonesa tatuada, dois gémeos ruivos que malabaravam gatinhos super inteligentes, uma fogueira branca que foi acesa por archeiros que disparavam flechas incendiárias brancas, Marco, que tinha um feitiço que fazia com que a sua cara ficasse mais convincente do queera, o pai de Célia, Próspero, a quem um feitiço correu mal e teve que passar o resto da vida como sessenta por cento de fantasma e quarenta por cento de nada, Isobel, a leitora das cartas que sim, sim, eu também fiquei montes de tempo convencido que era Célia disfarçada, o navio feito de livros que navegava num oceano de tinta, uma refeição em que o vinho era feito de poesia engarrafada, o labirinto nas nuvens, a piscina das lágrimas, lindíssima, por muito que não concordem comigo, a árvore dos desejos, o jardim do gelo e por aí fora… Enfim. Acabo bem, Marco e Célia ficam juntos e o Circo continua. Porque é que estás a chorar ?
(…)