Erin Morgenstern.
Mais uma vez se cumpriu a maldição de não
se poder dizer mal de um livro de capa preta. Maldição? Acho que sim porque me
parece que já não sou eu a julgar o livro pela seu conteúdo mas sim a,
chamemos-lhe assim, capa preta a condicionar-me, assim como se a sua própria
existência, automática e obrigatoriamente despoletasse o processo do costume.
Vejo o livro, saco-o, leio-o, publicito-o, suscito o interesse, compro-o … e
ofereço-o. E no fim, já nem sequer sei se o que me motiva é o livro ou o
processo, processo esse que é também um livro e que retrata o atractivo das
coisas tortuosas. Ó e se eu sou tortuoso… Voltando ao livro, não ajuda o facto
de se tratar de um livro sobre coisas irreais e mágicas, s obre desejos e
vontades, porque a magia era uma coisa extremamente bem-vinda no presente e,
quem escreve este livro, sempre no presente, sabe bem disso.
Por isso, até aqui se torna difícil avaliar
se o que estamos a gostar é do próprio livro ou do sentimento que a magia nele
contida pode, sei lá, extravasar um bocadinho que seja também para nós e
resolver magicamente aquilo que, sem magia, não se consegue resolver.
Se o que estamos a gostar é da história,
dos personagens e dos cenários (e que bonitos os cenários são) ou se gostamos
ainda mais da sensação de estarmos a transmitir um bocadinho dessa
especialidade a terceiros, com a esperança de assim mantermos nós também alguma
especialidade a outros olhos…
Mas bolas, afinal li o livro ou não ? Li
pois. E gostei ? Pá… não sei. Ultimamente não tenho gostado de muita coisa e,
além disso, grandes partes deste livro foram lidas num clima de grande
ansiedade, para não dizer outra coisa. Por outro lado, o livro é bom, bonito e
talvez me permita a oportunidade de restabelecer pontes mentais. E então em que
é que fico? Como é que me vou decidir?
Fazendo aquilo que cada vês sinto mais que
devia fazer na vida real mas que, me tem custado a arrancar. Calando-me e
deixando falar os outros. E quem falará ? Ele. Recorrerei então a uma ideia que
retirei de um livro brutal que, penso eu, sou a única pessoa que lhe dá o
devido valor. Chama-se Gog e está resumido algures lá para baixo. Nesse livro, Gog fazia entrevistas
imaginárias, que não aconteceram mas que deveriam ter acontecido. Imagino assim
a minha entrevista imaginária a um livro chamado o Circo dos Sonhos…
- Sabes ler, livro? Ou apenas deixas que te
leiam ?
- Sei ler.
- O que lês? Livros ? J
- Leio as pessoas que me estão a ler
enquanto me estão a ler.
- E como fazes isso ? Tens olhos em todas
as páginas ?
- Isso interessa ?
- Acho que não.
- Eu também acho que não…
(…)
- Mas então se só lês pessoas não sabes o
que escrevi lá em cima.
- Sei. Bastante bem. Fui-me apercebendo de
tudo enquanto me lias.
- És muito perspicaz.
- Tu é que és transparente.
- Confesso que já me disseram isso.
- E eu confesso que tive ajuda.
- De quem?
- Dos meus parentes mais próximos. Da minha
família.
- Da tua família da parte do papel ou da
parte da tinta ?
- Da minha família da tua parte.
- Da minha parte?
- Sim. São todos aqueles livros em que tu
passaste por este processo. Todos os livros que acabaste por dar, para
compartilhar com ele um mundo próprio em que tudo é permitido. Jonhatan Strange
e o Sr. Norrel, A rapariga que roubava livros, a Bruxa de Oz, os Reinos do
Norte, o Amuleto de Samarcanda, Josh, o cordeiro, o Bairro, o Rapaz que chutava
porcos, o Rapaz Ostra, o Reino do Dragão de Ouro…
- Então esse conjunto de livros existe
mesmo… Não é uma invenção minha.
- Pois não.
(…)
- Voltando a ti.
- A mim livro?
- A ti livro. Descreve-te.
- Critico-me?
- Não. Para isso estou cá eu.
- Não estás a conseguir.
- Se tu ajudares…
- Está bem. Lá vai…
(…)
- Não me considero um grande livro. Quando
as pessoas acabam de me ler sentem-se algo inquietas, com medo de não terem
percebido tudo, de não terem apreendido nem metade da riqueza que eu tenho. Um
grande livro impõe-se e satisfaz e isso foram duas coisas que não consegui
contigo. Não me impus o suficiente para te fazer abstrair do que te ia na
cabeça e, tendo ainda assim conseguido captar-te a atenção, não te vi a sorrir
extasiado mas sim a levantar as sobrancelhas preocupado com o facto de não
estares a perceber tudo aquilo que eu te estava dizer. Convenhamos: também não
está ao alcance de qualquer um.
- Pois. E eu não sou lá muito inteligente.
- Pois não…
- Se calhar o problema é teu.
- Se calhar é.
- Tenta outra vez. E desta vez fala de ti,
e não de mim.
(…)
- Começo com uma aposta entre dois mágicos
em que um deles aposta a própria filha e o outro aposta alguém que nem sabe
ainda quem será. E logo aí se coloca uma questão interessante. Quem está a se
mais honesto? O pai que hipoteca a própria filha ou o outro que deliberadamente
escolher alguém para ser hipotecado ? A ideia é cada mágico instruir o seu
pupilo para que ganhe o torneio de magia, que se irá desenrolar ao longo de
toda a vinda, até à morte de um deles. A mágica chama-se Célia e é super
intuitiva e o mágico chama-se Marco e, parece-me assim, é mais do tipo
racional. Célia passa a juventude a correr o mundo de circo em circo, com o
pai. Marco passa a juventude fechado num quarto, a ler. Um dia, veêm-se os dois
envolvidos na ideia de criação dum circo, patrocinado por um Sr. Super
carismático chamado Lefévre. Célia arranja logo maneira de nele trabalhar como
ilusionista enquanto que Marco consegue tornar-se o seu assistente pessoal. O
circo tem algumas particularidades
interessantes. Tem muitas tendas em vez de uma só e cada artista faz o seu espectáculo
dentro da sua tenda. Tudo o que existe no circo é preto e branco, e não preto ou branco nem mesmo cinzento. Ou seja, no Circo
dos Sonhos, ao contrário da vida real, as coisas podem ser de duas maneiras
diferentes e duas coisas boas não são mutuamente exclusivas. E a indeterminação
e a ambiguidade estão, na sua forma de cinzento, completamente proibidas. O
circo dos sonhos só funciona à noite, mas funciona a noite inteira, nã é como
eu, que só saio até às quatro. É feito para aquelas pessoas que ficam sempre
até ao fim, mesmo que não se perceba porquê nem a fazer o quê, mas que, mesmo
quando as coisas acabam, elas… continuam. O circo dos sonhos é feita para
pessoas incansáveis, mas nunca diz onde vai aparecer nem avisa quando se vai
embora. Simplesmente desaparece e viaja, sempre de comboio, para um sitio que
os seguidores só descobrirão quando as noticias do primeiro espectáculo ecoarem
vindas da nova localização. Simplificando, o Circo dos Sonhos é o único sítio
onde o amor de Célia e Marco é possível, pelo que ambos se empenham em que se
torne um sítio mágico e infinito, uma vez que sentem instintivamente que fora
do circo esse amor é impossível. E assim, com os contributos sucessivos e iterativos
dos dois mágicos, o circo torna-se uma coisa tão rica, bonita e completa que
confesso ter dúvidas do grau de
compreensão que atingi. Apenas me ficaram os pormenores, sendo que tudo o resto
se mistura como num… sonho. Pormenores, ainda assim, interessantes… uma
contorcionista japonesa tatuada, dois gémeos ruivos que malabaravam gatinhos
super inteligentes, uma fogueira branca que foi acesa por archeiros que
disparavam flechas incendiárias brancas, Marco, que tinha um feitiço que fazia
com que a sua cara ficasse mais convincente do queera, o pai de Célia,
Próspero, a quem um feitiço correu mal e teve que passar o resto da vida como
sessenta por cento de fantasma e quarenta por cento de nada, Isobel, a leitora
das cartas que sim, sim, eu também fiquei montes de tempo convencido que era
Célia disfarçada, o navio feito de livros que navegava num oceano de tinta, uma
refeição em que o vinho era feito de poesia engarrafada, o labirinto nas
nuvens, a piscina das lágrimas, lindíssima, por muito que não concordem comigo,
a árvore dos desejos, o jardim do gelo e por aí fora… Enfim. Acabo bem, Marco e
Célia ficam juntos e o Circo continua. Porque é que estás a chorar ?
(…)
Sem comentários:
Enviar um comentário