Mathew Pearl
Os princípios eram bons. Quatro poetas famosos americanos do pós-guerra civil resolvem traduzir a divina comédia, num ambiente puramente harvardiano. Convencido e arrogante como sou, imaginei logo que os quatro poetas famosos eram aqueles que eu conheço e admiro e que seriam a escolha lógica de qualquer escritor com bom senso. E que são, obviamente, Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Mark Twain e Henry David Thoreau. Ah, esses não são poetas, são apenas escritores, dirão os puristas mas eu, para além de querer que os puristas se lixem, acho que qualquer bom escritor é um bom poeta, sendo que o inverso não é obrigatoriamente verdade. Claramente que o autor do livro era um purista, pois os quatro poetas americanos famosos que ele escolheu foram Henry Wadsworth Longfellow, Oliver Wendell Holmes, James Russell Lowell e George Washington Greene. Destes todos, apenas conhecia vagamente um, não o George Washington, como toda a gente que nunca lerá este texto poderia estar a pensar, mas sim o Longfellow, conhecido mesmo entre as pessoas menos cultas como eu pelo seu famosíssimo bigode de morsa. Voltando ao livro, os poetas (des)conhecidos reuniam-se todas as quartas feiras para traduzir um canto da Divina Comédia, naquilo a que chamam o Clube Dante. Não resisto a mais um pequeno aparte. Os cultos falam sempre na Divina Comédia, insinuando assim que leram os três livros, mas na verdade, acabam sempre por só falar no Inferno, que foi o que qualquer comum mortal como eu leu e nada percebeu. Faz lembrar aquela anedota em que alguém dizia acerca da Barbie que " she is dating Kenny but actually, she's fucking Action Man". Bem, de repente começam a acontecer crimes em Boston iguais aos suplícios que Dante descrevia no Inferno, com a particular coincidência de acontecerem precisamente a seguir à reunião do clube. Ou seja, eles traduziam o castigo dos tíbios e alguém matava um tíbio da maneira que eles traduziam. Confesso que foi um exemplo algo infeliz, porque não fazia a mínima ideia do que era um tíbio e pelos vistos trata-se de uma pessoa que, podendo e devendo decidir, podendo e devendo agir, assim não o faz. Bolas, e eu que tenho um desses sempre à minha volta, a zumbir. E, digo eu, se isso é razão para ir para o Inferno e ainda por cima ser intensamente torturado então estávamos lixados. Íamos todos para lá. Pois é. Tinha tudo, o nosso escritor, para fazer um grande livro, que foi precisamente aquilo que não fez. Os poetas, que deviam ter o dom da palavra, tem diálogos muito pobres, quer entre si quer com o mundo. Passam a vida a chamar meu querido uns aos outros, o que não sendo directamente creditado na coluna da homossexualidade, me irrita porque é demasiado queque e eu detesto. O autor perde-se bastante nos pormenores da vida de Dante, mas numa perspectiva muito académica e algo mesquinha, com que ele depois faz o paralelo como mesmo ambiente académico e mesquinho da universidade. Depois existe o personagem do primeiro polícia negro de Boston, que também não diz duas palavras seguidas de jeito. Será que é de propósito? A ser, seria um golpe muito baixo. A única coisa fixe é a descrição da vida do assassino ao longo da guerra civil, que mostra como a sua humanidade se transformou em desumanidade e que, pelo menos a mim, me mostrou aspectos da guerra civil americana nos quais eu nunca tinha pensado. Aqui sim, conseguimos ter acesso ao interior de um dos personagens e quando damos por estamos a compreendê-lo perfeitamente e tudo o que ele diz nos parece fazer todo o sentido, e começamos a compreender o que ele fez. E, de repente, assustá-mo-nos, porque nós somos bons, e os bons não se identificam com os maus. Respiramos fundo e aliviamos a nossa consciência constatando que se trata apenas de um livro, e nem sequer é muito bom. Embora nos fique qualquer coisa a remoer o subconsciente e a dizer que se calhar não somos tão bons quanto isso. Nem nós nem o livro. Enfim, muito esforço meu (para me manter acordado a ler), um bom esforço do escritor (que claramente se aplicou e teve o mais difícil, que é uma grande ideia) mas um não muito bom livro. Nem pouco bom. Nem nada bom. Como diria o Shakespeare, mucha do about nothing. Como diria o João da Ega, uma seca.
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