Jean Christophe Grangé.
Eis um livro que não devemos deixar falar. Se deixarmos, mal a capa se abre levamos logo com uma enxurrada de sangue pegajosa, vermelha, omnipresente e abafadora, que não nos deixa pensar em mais nada. Se, por sorte, conseguirmos esquivarmo-nos desta onda, ou caso consigamos surfar airosamente na sua crista, não apanhando mais do que alguns salpicos deste sangue todo, então temos que nos haver com uma profusão enorme de traumas, infâncias desgraçadas, experiências traumáticas no passado, impotencias, disfuncionalidades, irracionalidades, incapacidades, enfim, todo um conjunto de sentimentos e estados de alma péssimos, que mais não fazem do que ver quão simples eu sou por dentro, por mais tortuoso que me venha sentindo ultimamente. E se, cerrando os dentes em torno da nossa presumida normalidade, espantamos para longe estava onda de sentimentos, ataca-nos uma terceira onda, de profunda indiferença e mediocridade, de total falta de objectivo e de sentido que (quase) todas as personagens deste livro nos transmitem, como se a sua única função fosse convencer o leitor que elas (as personagens) só existem para nos fazer sentir mal. Mas a vida nao e só literatura fantástica, e confesso que já andava a sentir a falta de um bom policial, daqueles cheios de sangue, mistérios e assassinos em serie. Vai dai, meti-me na boca do lobo. Como sempre. E não vai ser por medo de não escrever um texto bonito que valorize estas páginas que vou renegar aquilo que li. Porque a vida também e feita de coisas feias, e eu já ando há demasiado tempo cercado de coisas bonitas.
Jacques Reverdi foi campeão mundial de apneia, que e aquele desporto em que se desce a cem metros de profundidade sem nenhum tipo de equipamento. Correndo o risco de simplificar em demasia, neste tipo de experiências, combinando a pressão envolvente, as bolhas de azoto sempre à espera de se formar no sangue, a falta de luz e de oxigénio e o facto de se estar rodeado de peixes sem olhos, neste tipo de experiências, dizia eu, podem advir alguns traumas... Jacques vira-se assim para o assassínio de turistas estrangeiras em pleno sudoeste asiático, tipo Malásia e Tailândia. E mata-as de uma forma super original. Prende-as numa casa que previamente calafetou meticulosamente, faz-lhes bastantes furos no corpo, e tapa esses furos com mel. A medida que a casa vai ficando sem oxigénio e com o dióxido de carbono decorrente da respiração das raparigas a preencher cada vez mais a atmosfera, o esforço das raparigas para respirar aumenta consideravelmente a pressão no interior do seu corpo e, consequententemente, no mel que esta a servir de tampão as suas feridas. Nessa altura, Jacques derretia esse mel, o que fazia com que, de todas as feridas, causado pela pressão da respiração, saíssem jactos de sangue simultaneamente, fazendo padrões para ele, Jacqes, de uma beleza atordoadora. Esse sangue, privado de oxigénio, era... Negro.
Jacques é apanhado em flagrante logo no inicio do livro, e trancado numa prisão da Malásia, penso eu. Algures em Paris, temos Marc, ex paparazzo, ex jornalista de escândalos, actual jornalista em fase de criar uma obsessão por assassinos em série. Marc também não é um caso simples. Sempre que lhe morria alguém proximo, violentamente, caia em comas profundos que duravam semanas, e dos quais acordava sem se lembrar de nada. Aconteceu-lhe isso com o melhor amigo, suicidado e com a mulher, assassinada depois de bastante torturada.
E depois temos Jayd, egipto-argelina de um metro e oitenta e linda de morrer, que quer ser modelo. Para lhe dar profundidade intelectual, ela anda a estudar filosofia, mas esse pormenor era dispensável, uma vez que, também ela, detém um passado de meter medo ao susto. Os pais eram os dois heroinómanos e era ela que tratava, não só deles, mas dos três irmãos mais novos, vivendo sempre aterrorizada que os serviços sociais lhe viessem tirar as crianças. O que, fatalmente aconteceu, depois de os pais terem pegado fogo na sala ao lado do quarto onde ela dormia com os irmãos. Depois de ter conseguido salvar os irmãos, apenas teve tempo de ver o pai a cabeça do pai a separar-se do corpo, enquanto ardia. Os irmãos foram-lhe retirados e a ultima vez que ele viu o mais novo foi já preso. Tanto fogo não fez bem a Jayd, que continua a sentir-se queimada e seca por dentro, não conseguindo ainda hoje nenhum tipo de lubrificação sexual, o que faz com que o sexo seja para ela uma semi-tortura. Tipo, se calhar seria melhor não o fazer...
Marc obsessiona-se por Jacques e começa uma correspondência à distancia usando uma identidade externa, um misto entre passaporte roubado de uma rapariga chamada Elisabeth e uma fotografia de Jayd, que ele também roubou.
Jacques apaixona-se por Elisabeth e conta-lhe os pormenores de todos os seus crimes. Marc apaixona-se por Jacques e corre o continente asiático todo a seguir as suas pistas. Jayd apaixona-se por Marc, mas não faz nada, continuando vitima da sua aridez interior. Embora os triângulos sejam figuras geométricas com todas as características decorrentes à sua estabilidade, o facto é que nao são estáveis. Não se aguentam. O que é uma merda. O sentimento arrasa sempre com a geometria. E vai dai, o triangulo colapsou. Jacques fugiu da prisão, voltou a Paris e descobriu que Jayd nao era Elisabeth, ao ver que a sua foto estava espalhada por toda a cidade, devido ao seu entretanto sucesso adquirido como modelo. Descobriu tambem que Elisabeth era Marc, através do livro que este tinha entretanto escrito e em que escarrapachou a historia todinha de Jacques. Compreensivelmente, este arranjou uma casa, calafetou-a meticulosamente, prendeu lá dentro Jayd e Marc, furou-os com todo o cuidado ,tapou-lhes as feridas com mel e depois... Vá. Já chega. Já escrevi demais sobre este livro...
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