3.7.13

42-mr nobody


Jaco Van Dormael
Se eu fosse sensacionalista e se estivesse a tentar arranjar o nome para um filme, apresentar-me-ia como sendo Ninguém e a partir daí armaria tamanha confusão existencial que rapidamente me esqueceria do que vim aqui dizer. Pragmático como acho que sou, direi apenas que me chamo Nemo e não, embora a minha vida tenha dado um filme, não sou um peixe. Chamo-me Nemo Ninguém e começo pelo fim, que é o facto de ter 146 anos e ainda não ter morrido. Sou o último ser  humano a quem foi permitido viver a totalidade da sua vida natural, sendo que nesta altura todos os meus colegas de espécie tem a sua morte ainda melhor programada do que tiveram a sua vida. Também não me vou perder a discutir as vantagens e desvantagens da mortalidade programada. Os puristas dizem que a surpresa é boa, mas não é a morte uma surpresa má? Por outro lado, obedecer à ordem de ter que morrer amanhã, ou depois de amanhã, é uma coisa bastante castrante. Digo eu. Sei lá. Enfim, não é problema que eu tenha, porque a mim vão-me deixar morrer naturalmente. Sem me chatearem. Até porque já me chateiam o suficiente a querer sabes coisas da minha vida. Tipo duas vezes por semana tenho que contar a minha vida toda a um tipo careca com a cara e a cabeça completamente tatuada, num padrão maori mas a fugir para o fino. Tipo, não é nada bonito, mas ficaria bem num filme, que é o que isto é. Presumo que eles, os do futuro, queiram de alguma forma registar para a posteridade a história da vida do último homem livre, mas eu troco-lhes as voltas porque se há coisa que aprendi nestes anos todos é que a vida é demasiado rica para ser vivida apenas de uma maneira e o facto de tomarmos determinadas decisões e de seguirmos determinados caminhos não é definitivo.De facto não possamos fazer tudo aquilo que queremos, até porque, seja qual for o nosso grau de egoísmo, acabamos sempre por magoar alguém ao fazermos com que esse alguém viva o papel que lhe destinamos na nossa vida e não o papel que tem direito na vida dela. isso não seria justo... nem correcto... O que eu constato hoje é que se os sentimentos que nos orientaram durante a vida foram suficientemente fortes, então chegamos a esta altura e é como se tivéssemos vivido as vidas todas que quisemos. Olhando para trás, chega-se à conclusão que certas pessoas te acompanharam toda a vida, estiveram sempre na tua cabeça e isso, constato agora sem a mínima dúvida, é viver. Tipo neste momento, eu tive três vidas e todas tiveram a mesma intensidade de sentimentos. Em cada uma delas fui feliz e infeliz, mas em todas elas eu vivi, sendo que à beira da morte isso é sem dúvida o mais importante. Dizem que existem momentos chave nas nossas vidas, em que tomamos decisões que nos vão condicionar para sempre, que nessas decisões escolhemos umas coisas em detrimento das outras, e que o que não escolhemos é para sempre afastado das nossas vidas. A verdade é que isso não é verdade. As escolhas que se fazem são momentâneas e condicionam de facto a maneira como vivemos naquele instante, mas visto de longe, e desde que os sentimentos permaneçam fortes, a importância do que não viveste é igual à importância do que viveste. No limite, a única coisa que interessa é o quanto as coisas ainda significam para ti, porque é isso que te fica a acompanhar na eternidade, e não propriamente os momentos passageiros. o momento chave foi quando tive que decidir se ia no comboio com a minha mãe ou se ficava na plataforma da estação com o meu pai. 
Se tivesse ido no comboio com a minha mãe, ela ia acabar por arranjar um marido que iria ter uma filha chamada Ana mais ou menos da minha idade e  iríamos apaixonarmo-nos terrível e fisicamente, até que os nossos pais iam perceber e, usando isso como pretexto, separar-se-iam e separar-nos-iam... e eu depois ia passar o resto da vida à procura e à espera de a encontrar, até que finalmente isso ia acontecer em plena Grand Central Station, para logo a seguir a perder por causa de uma chuvada repentina que iria borratar o número de telefona que ela escreveu imprudentemente num lenço de papel com tinta que devia ser permanente mas claramente não o foi...
Se tivesse ficado na plataforma com o meu pai, iria tratar dele ao longo da sua doença, tipo fazendo-lhe a barba, lembrando-lhe quem ele é, tomando banho sentado com ele na banheira enquanto o chuveiro nos pinga copiosamente aos dois e eu já não sei se estamos a falar de gotas de água ou gotas de lágrimas, até que lhes provo o sabor, só para confirmar aquilo de que já desconfiava. E um dia ia encontrar uma rapariga chamada Elisa, pela qual me iria apaixonar bastante e a qual me disse logo quando a conheci que nunca se iria esquecer de um ex-namorado qualquer, e muitos anos depois, casado com ela e com três filhas lindas, iria ter que viver com o seu estado paranóico e mesmo assim ia dizer-lhe que nunca a deixaria, nunca nem por nada enquanto ela berrava em plenos pulmões no meio da rua; à chuva, com as nossas filhas a assistirem envergonhadas e tristes por dentro da janela...
E no fim deste filme que vocês viram, no fim deste filme que foi não só a minha vida mas todas as minhas vidas, a conclusão a que eu chego é que se não é facil tomar as decisões correctas porque não se conhece o futuro, então conhecendo-o, torna-se ainda mais difícil saber se as decisões que se tomaram foram mesmo as mais correctas...
mr. nobody

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