19.7.13

43-ruby sparks












Se tivesse que me apresentar devidamente, tipo dizendo qual a minha profissão e o que fiz e faço na vida, penso que me apresentaria como um escritor precoce. Escrevi um mega-sucesso aos dezassete anos e nunca mais fiz nada de jeito. Nem de jeito nem sem ser de jeito porque a verdade é que não fiz nada de nada. Estou preso naquilo que é o terror dos escritores que conseguem ultrapassar o terror daqueles que querem ser escritores e não conseguem. Ou seja, consegui ultrapassar o trauma da folha em branco e estou agora preso no trauma do segundo livro. Passo assim os dias a pensar se vou ser um one-hit case ou se ainda sairá mais alguma coisa de jeito dentro de mim. Passo os dias a tentar sonhar acordado,mas é à noite que tenho os sonhos que vale a pena, principalmente acerca daquela rapariga que tem qualquer coisa que mexe imenso comigo, mas que quando estou quase a descobrir o que é… acordo. Sorte que tenho um psicanalista inteligente, que me disse aquilo que eu deveria ter pensado logo, isto se fosse um escritor decente, e não um falhado completo que só escreveu um grande livro nos seus 15 anos de vida após ter aprendido a escrever. Escreve sobre essa rapariga, Zé… Foi o que ele disse. Vai daí, comecei a escrever. E então, de repente, um dia de manhã fui à cozinha e ela estava lá, a fazer-me ao mesmo tempo o pequeno almoço e um sorriso encantador. E olhava para mim como se vivesse comigo há temporões. Como nunca me preocupei com a lógica fundamental das coisas, com o sentido da vida e esse tipo de tretas, e como sempre fui consciente de que a boa sorte deve ser aproveitada, até porque é rara, decidi aproveitar. Se ela me conhecia tão bem, então eu também a conheceria a ela. E foi aí que a situação se tornou mesmo interessante, inquietantee até mesmo importante. É que ela conhecia-me meeeesmo bem.  Falava sempre dos assuntos que me estavam na cabeça, dizia as piadas que eu estava a pensar, fazia sexo de maneira a cumprir todas as minhas fantasias sem que eu tivesse que as verbalizar, ostentava um conjunto de tiques e maneirismos que eu achava lindíssimos, usava umas meias às riscas brutais… Graças a ela recuperei a minha segurança social e recomecei a escrever e escrevia cada vez mais. Sobre ela, principalmente. E quanto mais eu escrevia sobre o que esperava dela, o que sentia por ela, o que queria que ela fizesse, mais ela correspondia integralmente às minhas expectativas. Estava a tornar-se perfeito. E se há uma coisa que eu sempre soube é que a perfeição não existe porque se existisse já não era a perfeição. A perfeição, por definição, é intangível. E no entanto, ela estava ali; á minha frente. E mal eu percebi isto, começou lentamente a desmoronar-se. De repente ela começou a ficar errática, confusa, contraditória, implicativa. Tanto me queria obsessivamente como nem sequer suportava a minha presença. Cada manhã nunca sabia o que esperar dela. Parecia que ela ia à caixa de correio buscar as instruções diárias que iria seguir no seu comportamento. Inevitavelmente, os humores dela começaram a reflectir-se na inha escrita, que era onde eu vertia todas estas angústias. E quanto mais eu escrevia sobre o pior que ela se estava a tornar, pior ela se tornava. Havia ali uma espécie de coerência doentia. Quanto mais eu escrevia coisas boas sobre ela melhor ela se portava e quanto mais eu escrevia coisas más pior ela ficava. Então finalmente percebi. Eu não estava a escrever sobre ela, sobre a sua personalidade e o seu comportamento. Eu estava a escrevê-la a ela. À sua personalidade. Ao seu comportamento. Eu tinha-a inventado e ela era a projecção sem dúvida real de tudo o que eu tinha de bom e de mau dentro de mim. Ela fazia tudo o que eu escrevia. Cantava, dançava, falava francês, fazia sexo, ria, chorava, tinha saudades de mim, ladrava… Tudo o que eu queria. Tudo o que eu escrevia. E embora tenha chegado a abusar um bocadinho disto, cheguei à conclusão que tinha que libertá-la. E, assim sendo, escrevi-lhe uma nova memória e escrevi-lhe a capacidade de decidir por lívre arbítrio. E embora sinta muito a falta dela, sei que se algum dia nos tornarmos a encontrar, tudo vai correr melhor…

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