Se
tivesse que me apresentar devidamente, tipo dizendo qual a minha profissão e o
que fiz e faço na vida, penso que me apresentaria como um escritor precoce.
Escrevi um mega-sucesso aos dezassete anos e nunca mais fiz nada de jeito. Nem
de jeito nem sem ser de jeito porque a verdade é que não fiz nada de nada.
Estou preso naquilo que é o terror dos escritores que conseguem ultrapassar o
terror daqueles que querem ser escritores e não conseguem. Ou seja, consegui
ultrapassar o trauma da folha em branco e estou agora preso no trauma do
segundo livro. Passo assim os dias a pensar se vou ser um one-hit case ou se
ainda sairá mais alguma coisa de jeito dentro de mim. Passo os dias a tentar
sonhar acordado,mas é à noite que tenho os sonhos que vale a pena,
principalmente acerca daquela rapariga que tem qualquer coisa que mexe imenso
comigo, mas que quando estou quase a descobrir o que é… acordo. Sorte que tenho
um psicanalista inteligente, que me disse aquilo que eu deveria ter pensado
logo, isto se fosse um escritor decente, e não um falhado completo que só escreveu
um grande livro nos seus 15 anos de vida após ter aprendido a escrever. Escreve
sobre essa rapariga, Zé… Foi o que ele disse. Vai daí, comecei a escrever. E
então, de repente, um dia de manhã fui à cozinha e ela estava lá, a fazer-me ao
mesmo tempo o pequeno almoço e um sorriso encantador. E olhava para mim como se
vivesse comigo há temporões. Como nunca me preocupei com a lógica fundamental
das coisas, com o sentido da vida e esse tipo de tretas, e como sempre fui
consciente de que a boa sorte deve ser aproveitada, até porque é rara, decidi
aproveitar. Se ela me conhecia tão bem, então eu também a conheceria a ela. E
foi aí que a situação se tornou mesmo interessante, inquietantee até mesmo
importante. É que ela conhecia-me meeeesmo bem.
Falava sempre dos assuntos que me estavam na cabeça, dizia as piadas que
eu estava a pensar, fazia sexo de maneira a cumprir todas as minhas fantasias
sem que eu tivesse que as verbalizar, ostentava um conjunto de tiques e
maneirismos que eu achava lindíssimos, usava umas meias às riscas brutais…
Graças a ela recuperei a minha segurança social e recomecei a escrever e
escrevia cada vez mais. Sobre ela, principalmente. E quanto mais eu escrevia
sobre o que esperava dela, o que sentia por ela, o que queria que ela fizesse,
mais ela correspondia integralmente às minhas expectativas. Estava a tornar-se
perfeito. E se há uma coisa que eu sempre soube é que a perfeição não existe
porque se existisse já não era a perfeição. A perfeição, por definição, é
intangível. E no entanto, ela estava ali; á minha frente. E mal eu percebi
isto, começou lentamente a desmoronar-se. De repente ela começou a ficar
errática, confusa, contraditória, implicativa. Tanto me queria obsessivamente
como nem sequer suportava a minha presença. Cada manhã nunca sabia o que
esperar dela. Parecia que ela ia à caixa de correio buscar as instruções
diárias que iria seguir no seu comportamento. Inevitavelmente, os humores dela
começaram a reflectir-se na inha escrita, que era onde eu vertia todas estas
angústias. E quanto mais eu escrevia sobre o pior que ela se estava a tornar,
pior ela se tornava. Havia ali uma espécie de coerência doentia. Quanto mais eu
escrevia coisas boas sobre ela melhor ela se portava e quanto mais eu escrevia
coisas más pior ela ficava. Então finalmente percebi. Eu não estava a escrever
sobre ela, sobre a sua personalidade e o seu comportamento. Eu estava a
escrevê-la a ela. À sua personalidade. Ao
seu comportamento. Eu tinha-a inventado e ela era a projecção sem dúvida real
de tudo o que eu tinha de bom e de mau dentro de mim. Ela fazia tudo o que eu
escrevia. Cantava, dançava, falava francês, fazia sexo, ria, chorava, tinha
saudades de mim, ladrava… Tudo o que eu queria. Tudo o que eu escrevia. E
embora tenha chegado a abusar um bocadinho disto, cheguei à conclusão que tinha
que libertá-la. E, assim sendo, escrevi-lhe uma nova memória e escrevi-lhe a
capacidade de decidir por lívre arbítrio. E embora sinta muito a falta dela,
sei que se algum dia nos tornarmos a encontrar, tudo vai correr melhor…
19.7.13
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