Gabriel Bá e Fábio Moon.
Era o dia dos
seus anos, e tudo o que Brás queria era a vida que não conseguia ter. Se, por
um lado, era de facto um jornalista, por outro lado trabalhava na secção dos
obituários. Sempre quisera escrever sobre a vida, mas apenas escrevia sobre a
morte. Brás era como todos nós, mas um bocadinho mais a frente no sentido em
que estava efectivamente a escrever um livro, e não se limitava apenas a sonhar
escreve-lo. Livro esse, que no entanto, não parecia satisfazê-lo tanto como a
ideia de escrever um livro me satisfaz em mim. E a velha história da potência e
do acto, sendo que todos somos potentes em potência e nem todos, de nós, é
efectivamente potente no acto. Dos obituários que Brás tinha para escrever
nesse dia, destacava-se o de um pintor que tinha morrido com quase noventa anos
e que se tinha apaixonado por 184 mulheres, tendo pintado de cada uma delas um
retrato lindíssimo. Nunca se tendo casado, tinha ainda assim perfilhado 7
filhos, dos quais tinham resultado não sei quantos netos. O único problema que
esse pintor tinha, digo eu, era dar sempre o mesmo nome aos 184 quadros das
mulheres que amou. Alguém mais retorcido poderia pensar que amou apenas uma, a
do nome, e que se calhar as outras eram apenas uma tentativa para tapar o
buraco, não apenas literalmente. Brás não conseguia deixar de avaliar a sua
própria vida sempre que tinha que escrever um obituário. Achava-se um escritor
diminuído, ate porque grande parte do seu trabalho não via a luz do dia, uma
vez que nem sempre as pessoas morriam, embora ele tivesse que ir adiantando os
obituários sempre que alguém famoso adoecia, para que o morto não o apanhasse
depois de surpresa. Nesse dia, Brás estava especialmente deprimido. O pai,
escritor famoso, ia ser homenageado nessa noite no Teatro Municipal. E tudo
girava, nesse dia, a volta disso. A mãe que lhe ligou para lhe lembrar o
evento, a namorada, Ana, que lhe ligou de propósito a dizer que não ia estar
presente e mesmo o melhor amigo, Jorge, que insistia na sua ida porque não
queria ser o único negro na festa. Ao que Brás respondeu que essa era uma não
questão, uma vez que ele, Brás era branco, e não negro e que, para além disso,
o ministro da cultura também era negro. E vai, perguntou Jorge desorbitando os
olhos ??? Claro que não, disse Brás revirando os olhos. Toda a gente pensava no
evento e Brás não conseguia evitar o desconforto de ver quão pouco importante e
quão pouco sucesso ele tinha. Pediu um maço de cigarros no balcão do bar onde tinha
entretanto entrado, já de smoking, a porta do teatro. Só os cigarros, perguntou
Genarinho, o barman que ele ainda não conhecia e cujo pai, Genaro, tinha
fundado o estabelecimento. E uma cerveja, respondeu Brás, filosofando que este
fenómeno antropofágico pai filho ao menos não era de exclusividade sua. Igualmente
irónico foi aquilo que se passou a seguir. Como estávamos no Brasil, entrou um
capitão da areia qualquer, assaltou o bar e matou-os aos dois. Se não tivesse
morrido, Brás não poderia deixar de pensar na ironia de que, na face da morte,
todos os outros problemas são profundamente relativizáveis.
Brás estava na Bahia, a fazer aquela viagem da sua vida que apenas nós, os
portugueses, nunca fazemos. Aquela viagem em que se pode fazer tudo o que se
queira, sem compromissos, sem responsabilidades, talvez a única altura na vida
em que somos verdadeiramente livres porque ninguém nos conhece e nos não
conhecemos ninguém. Aquela viagem que eu não fiz e que Brás resolveu
compartilhar com Jorge, o seu melhor amigo. Na Bahia, dizia eu, onde Brás, que
era branco passava a vida a ser confundido com um gringo, não tardando a ser
envolvido em tirinhas do Senhor do Bonfim e em colares típicos. Jorge, algo
mais escuro, passava mais por indígena e podia assim dedicar-se a tirar
fotografias à vontade. A respeito de Jorge como fotógrafo, dois pormenores que
dele só dizem bem: recusou-se a tirar fotos ao nascer do sol, dizendo que
nenhuma foto era suficientemente grande para captar aquela beleza; e tirou uns
closes a umas garrafas cheias de especiarias que me parece que teriam ficado
mesmo bem, se isto fosse real. Bom nadador, Brás resolve fazer isso mesmo e
nada até uns barcos que estavam ao largo da praia, provavelmente para ficar um
bocadinho só, a bronzear-se e a bahificar-se. Dentro do barco estava, no
entanto, uma loira de pele morena, escultural, de biquíni, que em meia dúzia de
frases o desarmou completamente e o fez não descansar enquanto não saísse com
ela. A loira era uma fiel devota de Iemanjá, e convidou Brás para a cerimónia
que iria haver nessa mesma noite, à qual Brás foi para morrer novamente, desta
vez afogado. Se não tivesse morrido, Brás não conseguiria deixar de pensar na
ironia de ter encontrado a morte na viagem da sua vida.
Brás estava no seu apartamento e na varanda estava a rapariga loira que tinha
conhecido na Bahia, e com a qual já vivia junto há sete anos. Ela, chorando,
virou-se para ele e disse-lhe que o odiava e que nunca mais o queria ver.
Embora exista sempre a tentação de achar que estas separações definitivas são
mais fáceis de materializar e aceitar para se poder continuar em frente, tal não
e verdade, porque nada poderá ser pior que a certeza absoluta que a pessoa de
quem se gosta nunca mais vai estar connosco. Brás, se não sabia disso, passou a
senti-lo na própria pele, pois não conseguia deixar de a ver e de a querer
sentir em todos os aspectos da sua vida. Um aspecto particularmente doloroso
foi ver as cuecas dela penduradas no estendal, a secar e a secá-lo, por dentro,
completamente. Cada canto do apartamento fazia com que Brás pensasse nela e o
seu maior terror era que o cheiro dela saísse de todos os objectos que a pele
dela tinha tocado. Por essa razão, Brás dormia no sofá, para que os lençóis
nunca deixassem de cheirar a ela, mas nada disto resultou e a humidade do clima
de São Paulo levou-lhe o cheiro dela de todo o lado menos de um pequeno
cobertor a que ela se agarrava e embrulhava sempre que os dois
viam filmes. Profundamente deprimido, Brás lembrou-se daquele dia em que Jorge
lhe tirou uma fotografia na redacção do jornal e a colocou na parede com uma
legenda a dizer que Brás tinha morrido, mas que ninguém lhe tinha dito isso e,
por essa razão, ele apareceu para trabalhar. E daquela frase que o pai lhe
disse ao jantar, evocando o dia em que tinha conhecido a sua mãe. O pai de Brás
disse à mãe que queria ser escritor, e que tinha a certeza que havia um grande
romance à espera de ser escrito por ele. A mãe respondeu-lhe dizendo que
esperava que houvesse um grande romance à espera de ser vivido por ele. Para onde quer que se virasse, Brás apenas via a
rapariga que veio da Bahia e um dia, no supermercado, olhou para o lado e viu
uma coisa diferente. Uma rapariga de cabelo preto e olhos verdes, que olhou
para ele simpaticamente enquanto comia um gelado. Brás, aturdido, pagou as suas
compras e caminhou ao longo da rua, sentindo que toda aquela dor começava a
ceder caminho a outra coisa que ele ainda não percebia bem o que era. Voltou
para trás a correr, para falar com a rapariga do gelado e foi atropelado por
uma carrinha, morrendo logo ali. Se não tivesse morrido, Brás não deixaria de
constatar a ironia que era a ter sido a morte que lhe impediu de superar o amor
da sua vida.
Brás encontrou a felicidade. Estava a caminho do hospital com a mulher, grávida
no fim do tempo, aquela mulher que tinha conhecido num supermercado a comer um
gelado, com a qual tinha casado, e com a qual se preparava agora para criar um
ou mais filhos. Tinha também escrito o seu primeiro livro, um romance chamado
olhos de seda, que estava a ser um sucesso. No entanto, e de repente, tudo
desabou uma vez mais. O pai morreu e Brás descobriu que ele sempre tivera uma
família paralela, tendo tido uma filha que, assim sendo, era sua meia-irmã.
Para complicar ainda mais, a sua mãe insistiu que ele fosse a casa buscar o
babygrow que tinha sido a sua primeira roupa, para que fosse também a primeira
roupa do seu filho. Brás foi e parou frente à secretaria do pai, onde este
tinha tido o ataque cardíaco que lhe tinha causado a morte. Coerentemente, Brás
sentiu uma dor no peito e sofreu também um ataque cardíaco, morrendo. Se não
tivesse morrido, Brás não teria deixado de constatar a ironia que foi ele,
sempre tão independente e sempre a tentar descolar-se da imagem do pai, ter não
só vivido a imagem deste, como também morrido da mesma forma.
Brás voltou a infância, à quinta dos avós, onde toda a família se encontrava
aos fins de semana, onde ele e a irmã brincavam com os primos a todos as
brincadeiras que às crianças são permitidas. À quinta onde corriam atrás de galinholas,
que são diferentes das galinhas não só no nome mas também no facto de voarem
quando alguém se chega muito perto. À quinta onde a avó dava um nome a cada um
dos animais, porque não fazia sentido que houvesse membros da família sem nome
e onde um dia, inevitavelmente, comeram Maria do Carmo ao almoço. Á quinta onde
davam baratas aos sapos, para que estes as comessem enquanto eles gritavam olé
touro. À quinta onde o pai de Brás adorava ir, embora não fosse da família,
porque tinha todo o tempo do mundo para escrever o seu primeiro livro, debaixo
de uma árvore com as raízes retorcidas todas de fora da terra. Árvore essa onde
Brás deu o seu primeiro beijo na boca, à prima, loira e bonita que dizia que
quando fosse grande havia de desfilar nua no carnaval, que era a altura em que
toda a família passava a semana inteira na quinta. À quinta que era tão
importante para Brás que ele já não se sentia triste da semana passada na
cidade, porque o fim de semana haveria de chegar e eles todos voltariam para
lá. Brás deveria ter, nessa altura, aí uns dez anos e um dia, na cidade, o
papagaio com que brincava ficou preso nos fios de um poste de alta tensão. Brás
morreu electrocutado, e desta vez nada de irónico havia a registar, porque as
crianças com dez anos não sabem o que é a ironia.
Brás chegou a
redacção do jornal onde as suas funções eram escrever os óbitos de quem morria,
logo a seguir publicados e os que, estando às portas da morte, a ela escapavam,
e que iam para a gaveta a espera que a morte deixasse de ter dúvidas. Porque,
como já dizia Rudy, a morte afasta-se com um soco, quando vier. Não resultou, e
toda a gente chorou quando Rudy morreu. Nesse dia, tinha caído um avião e todos
os repórteres foram a correr para o aeroporto, fazer a cobertura do acidente. Brás
ficou duplamente, perturbado, porque nunca na vida tinha tantos verdadeiros
óbitos para escrever e, simultaneamente, Jorge tinha desaparecido e havia
grandes probabilidades de ter estado naquele avião. Naqueles dias que se
seguiram ao acidente, Brás foi o repórter mais importante do jornal, pois foram
as suas palavras escritas que deram sentido a vida de todos os que morreram no
desastre. E que trouxeram conforto a todos os seus familiares. Satisfeito, Brás
ficou ainda mais depois de Jorge ter finalmente telefonado a dizer que por
milagre tinha perdido o avião que caiu e que, transtornado por esse sinal
divino, não regressaria mais do Rio de Janeiro, aonde tinha ido em mais uma
viagem de sentido da vida. Brás decidiu ir buscá-lo e morreu quando, na auto-estrada,
dois camiões resolveram abraçar-se à frente do seu carro. Se não tivesse
morrido, Brás não teria deixado de constatar a ironia de ter instruído a morte
de 93 pessoas sem nunca ter escrito nada que desse sentido à sua.
Brás tinha
finalmente conseguido dar voz ao escritor que tinha dentro de si. Aquele
desastre de avião que o tinha feito escrever 93 obituários seguidos, todos
simples e cheios de sentido, tinham efectivamente posto à prova as suas
capacidades de escrita, e o reconhecimento global que teve de todas as famílias
das vítimas deram-lhe finalmente coragem para começar a escrever o livro
quentinha dentro de si. Esse dia, em que nasceu o escritor, coincidiu com o dia
em que Jorge, o seu melhor amigo, saiu da sua vida, desaparecendo para parte
incerta. Há muitas coisas na vida difíceis de compreender, e mais difíceis
ainda de pôr em palavras. A amizade é, sem sombra de duvida, uma dessas coisas.
Cinco anos depois, Brás recebeu um postal de Jorge, a dizer apenas que
"não consigo fazê-lo sem ti". Brás viajou através de metade do país
apenas para ser brutalmente assassinado por Jorge, que nestes anos todos tinha
enlouquecido e que se matou logo de seguida. Se não tivesse morrido, Brás não
teria deixado de constatar a ironia dentre morrido porque acreditava na amizade
do seu melhor amigo.
Brás não
conseguia parar de sonhar. Sonhou com o dia em que morreu no bar de Genarinho,
morto por um assaltante inconsequente. Tinha 32 anos. Sonhou com o dia em que
encontrou Iemanjá no barco e que morreu de seguida afogado. Tinha 21 anos. E
com o dia em que morreu atropelado por uma carrinha enquanto atravessava a rua
para se ir declarar a Ana, o segundo e maior amor da sua vida. Tinha 28 anos. E
com o dia em que o seu pai morreu e o seu filho nasceu e em que ele, atacado
cardiacamente, morreu também. Tinha 41 anos. Sonhou com o dia em que corria com
o papagaio e morreu electrocutado quando este ficou preso no poste de alta
tensão. Tinha 10 anos. E com o dia em que is na estrada em busca de Jorge,
depois de ter escrito 93 obituários e morreu esmagado pelo abraço de dois
camiões. Tinha 33 anos. E com o dia e quem Jorge, já louco, o esfaqueou até à
morte, na praia com o sol a olhar e a areia a assistir. Tinha 38 anos. E sonhou
com o dia que contou ao filho a história da morte. A morte faz parte da vida. A
vida é como um livro e cada livro tem o seu fim. Por mais que se goste do
livro, chega-se à última página e ele acaba. Nenhum livro é completo sem o seu
fim e apenas quando se lá chega é que se sabe se o livro foi bom ou não. Brás acorda dos sonhos e senta-se em frente à
máquina de escrever. Tinha encontrado o fim para o seu livro. Acabou-o e
morreu. Não sei quantos anos tinha. Era velho…
Brás é
finalmente velho. O médico diz que tem a cabeça cheia de tumores. Que as suas
dores de cabeça vão aumentar e a sua memória vai desaparecer. Brás volta para
casa, onde está Ana, também ela velha. E onde o filho, Miguel, o visita e lhe entrega uma carta do pai de Brás, seu
avô. Uma carta que o pai lhe escreveu no dia em que o seu filho nasceu e o seu
pai morreu. E a carta dizia…
… que o filho
que estava a nascer ia ser a unia razão da sua existência…
… que Brás lhe
ia entregar o corpo, a alma e o coração…
… que Brás o
ia educar para que este fosse forte e, um dia, não precisasse mais dele…
… e que nesse
dia, Brás deixaria o seu filho partir…
… e que essa
era a grande verdade…
Que apenas
podemos partir no dia em que os nossos filhos já não precisarem de nós. Ao ler
a carta, Brás percebeu que foi o que o
seu pai fez e que esse dia tinha chegado para si. E partiu. Morreu. Não sei
quantos anos tinha. Desta vez, de vez.