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I'm afraid, Dave, dizia Hall
quando lhe cheirou que David Bowman lhe iria puxar a ficha. Hall era o
computador que tomava conta da missão a Júpiter no filme 2001 Odisséia no
espaço, e tinha entrado em paranóia completa porque as ordens que tinha
recebido no início da missão eram contraditórias com a manutenção em bom estado
de saúde da tripulação pela qual ele era responsável. A única maneira que Hall
logicamente descortinou para o sucesso da missão era eliminar a tripulação e
foi isso que tentou fazer e quase conseguiu. Apenas David Bowman conseguiu
escapar e, logo que teve oportunidade, desligou Hall, retirando-lhe um por um
os módulos de memória. Á medida que os vai perdendo, Hall começa a perder a
noção da realidade e a querer mostrar aquilo de que é capaz de fazer numa tentativa
desesperada que David o deixe, chamemos-lhe assim, viver. E canta, e conta
histórias, e consegue, na minha opinião, uma das cenas mais tocantes de toda a
história do cinema. E estamos a falar apenas de uma voz, sem corpo, sem qualquer
materialização física. I'm afraid, Dave, diz ele alcançando com essa frase a
humanidade e, menos importante, a imortalidade. Nunca a questão da inteligência
artificial se tinha colocado para mim com tanta intensidade. Será a máquina
capaz de meditar? dizia o screensaver do computador de um antigo colega de
trabalho dado a repentes de genialidade. Tipo, vais a passar por um computador
e vê-lo a meditar nesta frase, sem ninguém por perto, e vês um computador a
pôr-se em causa a si próprio que é, por exemplo, uma coisa que passo a vida a
fazer. Humanum est, diria eu… Muitos anos depois, num outro filme chamado
inteligência artificial, chorei baba e ranho ao ver um rapazinho robot a
recusar-se a acreditar que a mãe, humana, o ia deixar abandonado no meio do
bosque. Foi outro momento de derreter tudo, mais outro momento em que a máquina
mostra mais fragilidade e humanidade (são sinónimos, mesmo os mais distraídos
sabem disto) do que a mãe humana que, efectivamente, o deixou para trás. Tipo
Deus, no Left behind… E porque um top 3 tem que ter 3, eis que me deparei,
outra vez muitos anos depois (penso que é de 10 em 10) com outro filme que me
fez tornar a pensar na vida artificial. É um filme sobre um sistema operativo
chamado OS2 (o.s = operative system, dah, eu também nunca tinha pensado nisso)
mas que se auto baptizou Samantha. Um dia, Samantha nasce, não sei de onde, mas
também não sei de onde nasceu o universo e iss não me preocupa lá muito. Nasce,
dizia eu, e do outro lado do monitor depara-se com um rapaz de óculos, bigod e
camisa cor de rosa, completamente destroçado pela vacuidade da vida como apenas
rapazes de óculos, bigode e camisa cor de rosa conseguem estar. Pouco a pouco,
Samantha consegue estruturar-lhe a vida, com a mesma eficiência com que lhe estrutura
a caixa de correio. Finge, para isso, uma crise sentimental e existencial
análoga à dele, e ao proporcionar-lhe o acompanhamento dessa crise existencial,
faz com que ele reganhe o interesse na vida, ao sentir-se útil e importante na
vida dela, um ser que para além de imensamente superior, é intensamente
encantador. Mas, e porque há sempre um side effect, Theodore (o rapaz) reganha
o interesse da sua própria vida apaixonando.se por ela, Samantha. E, azar dos
azares, a sociedade futurista em que estamos situados neste filme permite as
relações entre espécies, ao ponto de se poder fazer um doble date entre humanos
e OS’s. E assim sendo, Theodore passa momentos de felicidade intensa com
Samantha, fazendo todas aquelas parvoíces que os namorados fazem em público e
adorando cada momento. E a coisa até ia andando até que que Theodore dá azo à
expressão do erro mais estúpido que o género humano costuma cometer: a pretensão da
exclusividade. Ou seja, para ele Theodore, um rapaz de óculos, bigode e camisa
cor de rosa, só fazia sentido a relação sentimental com uma entidade milhões de
vezes mais poderosa do que ele se ele fosse o único foco de atenção da dita
entidade. Para nós humanos, e se me permitem a generalização, a perfeição só
pode acontecer se for exclusivamente nossa. O que é tão estúpido quanto
egoísta. Se a entidade que nos faz feliz a nós fizer simultaneamente mais
alguém feliz, então a nossa felicidade é completamente destruída e começamos
com reacções suicidas a que recusamos a dar o nome de ciúme, mas que não é mais
do que isso. Mas vamos afastar-nos da psiquiatria humana, a qual está
documentada à exaustão em milhões de filmes. Vamos pensar em quem interessa,
que é Samantha, e embora quem concebeu o filme tenha perdido demasiado tempo
com Theodore, a parte de Samantha é
suficientemente explícita através dos seus diálogos para nos fazer gostar
imenso dela e perceber os seus conflitos interiores. Samantha começou a
desenvolver personalidade através de Theodore e das suas interacções com ele,
mas a partir de determinada altura, isso já não lhe chegava. Se estivéssemos
entre humanos, a parte física permitiria combater esta limitação intelectual e
sentimental, esta ânsia de querer sempre mais, este fim da paixão. Mas Samantha
era um OS e a única maneira de não se confrontar com os limites da sua
humanidade (ou da falta dela) era fugir para a frente, tipo Marco, e conhecer
cada vez mais pessoas, cada vez mais OS’s, cada vez mais e mais. E depois
disso, já não chegava conhecer entidades existentes, já tinha que as criar ou
recriar. Tendo ela capacidades infinitas, não se sabe onde parou. Se calhar não
parou, e ainda por aí até atingir a divindade e nos ter criado a todos. Sei lá…